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Especial

O seringueiro que virou gestor de uma reserva símbolo de sustentabilidade

O seringueiro que virou gestor de uma reserva símbolo de sustentabilidade

Ameaçado de morte, Manoel Cunha não arredou o pé da luta pela criação da Resex do Médio Juruá, nos anos 90. Como servidor no ICMBio, ele ajuda a manter e potencializar as ações que fizeram da unidade exemplo de conservação e bioeconomia na Amazônia

“Vim parar no ICMBio por exigência da comunidade, mas o que eu gosto mesmo é de viver no mato e cortar seringa”, diz o extrativista Manoel Cunha, de 54 anos. Manoel trabalha no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade como gestor da Reserva Extrativista (Resex) do Médio Juruá, na região central do Amazonas, onde habitam mais de 2,6 mil pessoas.

O cargo, assumido em 2016, é fruto de quase quatro décadas de luta pelo empoderamento comunitário na unidade de conservação, uma das mais preservadas e exemplo de sustentabilidade na Amazônia. 

Ele nasceu e cresceu na região, sendo um ponto fora da curva nos quadros da autarquia federal, que é quem escolhe os gestores das reservas. Na Amazônia, o seringueiro só conhece outro exemplo de Resex gerida por gente da base: a do Médio Purus (AM).

Manoel trabalha em um escritório no município de Carauari, mas não perdeu o vínculo com a unidade. “Eu sou morador e manejador na Resex. A única casa que tenho na superfície da Terra é lá”, afirma. Apesar do cargo importante, seu maior orgulho é ser um seringueiro que conseguiu romper com os grilhões da semiescravidão típica dos antigos seringais. Nos anos 70, os moradores não tinham liberdade para plantar e pescar e eram obrigados a adquirir alimentos nos barracões administrados pelos patrões (na maioria das vezes posseiros ilegais) com quem tinha dívidas intermináveis, em uma espécie de feudalismo na floresta.

Mas no início da década de 80, quando teve contato com o Movimento de Educação de Base (MEB), ligado à Igreja Católica, as coisas começaram a mudar. Após a explicação de um padre sobre a conjuntura da sociedade brasileira, Manoel entendeu que os explorados formavam a  camada mais populosa. Percebeu que, unidos, eles poderiam transformar aquele sistema de trabalho que só beneficiava poucos.

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“Sou de família religiosa e minha mãe dizia que a gente era pobre porque Deus queria. Mas depois percebi que eu era pobre porque tinha um sistema implantado nos seringais para a gente trabalhar para o rico”, lembra.

A semente plantada pelo padre despertou o espírito de liderança no menino, que se uniu a outros seringueiros. Dois anos depois já havia na comunidade uma célula do combativo Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR), um centro comunitário para reuniões políticas e escola para alfabetização dos moradores.

Filho de analfabetos, Manoel, enfim, aprendeu o básico da leitura e escrita e virou professor. “Como falava bem e tinha clareza do que queria, eu me tornei uma liderança de referência e um mobilizador”.

Outro acontecimento que marcou a vida do extrativista foi a visita, em meados dos anos 80, do então presidente do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), Juarez Leitão. O líder extrativista levou ao Médio Juruá as ideias que fervilhavam nos recantos da Amazônia como a mobilização para transformar os seringais em territórios livres da exploração para uso exclusivo das populações tradicionais. Era o conceito das Resex tomando forma.

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Outra atividade de destaque foi o manejo de pirarucu. Quando a Resex foi criada, esse peixe era pouco visto na área por conta da pesca predatória por empresas que exploravam a região. Após a saída desses grupos, as populações da espécie voltaram a crescer em um ritmo acelerado e, em 2011, tem início a comercialização a partir da pesca planejada. Segundo Manoel, mesmo com a prática, a quantidade desse pescado no rio e lagos só aumenta, com três vezes mais indivíduos do que há 10 anos.As comunidades extrativistas que habitam a Resex hoje vivem da venda de peixes, como o pirarucu, e de sementes, como o murumuru, andiroba, virola e açaí. Pelo menos sete associações locais fazem a gestão dos negócios. Crédito: Acervo Pessoal/Manoel Cunha


“Quando ele falou isso, nós endoidamos. Começamos a nos organizar e elaborar documentos”, recorda. O pedido de criação da Resex do Médio Juruá foi protocolado em 1990, ano em que foi criada a primeira unidade de conservação desse tipo no Brasil, a do Alto Juruá, no Acre. Na época, a extração da borracha estava em crise na Amazônia, e os patrões do Médio Juruá investiam fortemente em madeira e arrendamento de mananciais para a pesca intensiva.

“Dos 61 lagos na região, apenas um era para uso da comunidade. Quando a gente passou a contestar esse sistema, aí as coisas ficaram pesadas. Fui ameaçado de morte e tivemos de enfrentar até a polícia. Foram anos difíceis, mas sobrevivemos”, detalha.

Com 286 mil hectares, a Resex do Médio Juruá finalmente saiu do papel sete anos após o pedido de criação, em 1997 – e sem nenhuma gota de sangue derramada. Os patrões deixaram a área gradativamente, e os seringueiros finalmente se apropriaram da gestão do território.

Uma vez criada a Resex, os extrativistas tiveram de procurar meios para mudar a ordem econômica no território. O primeiro passo foi o fortalecimento das organizações existentes, sendo a principal delas a Associação dos Produtores Rurais de Carauari (Asproc). Depois, ocorreu a criação de novas entidades a fim de captar recursos e implementar uma cadeia produtiva que respeitasse a floresta – hoje, existem pelo menos sete associações locais. Em 1998, Manoel foi eleito presidente da Asproc e passa a trabalhar com esse objetivo.

O potencial bioeconômico da região atraiu, em 2000, a atenção da Natura, que ajudou a fortalecer a produção de óleo vegetal na reserva a partir da extração sustentável de sementes de murumuru, andiroba e virola. A parceria com a empresa dura até hoje. O açaí, antes apenas um produto de consumo, passou a ser manejado e comercializado.

seringueiro 003 webA bioeconomia da Resex é baseada no manejo de peixes e de sementes. Crédito: Acervo pessoal/Manoel Cunha

Outra atividade de destaque foi o manejo de pirarucu. Quando a Resex foi criada, esse peixe era pouco visto na área por conta da pesca predatória por empresas que exploravam a região. Após a saída desses grupos, as populações da espécie voltaram a crescer em um ritmo acelerado e, em 2011, tem início a comercialização a partir da pesca planejada. Segundo Manoel, mesmo com a prática, a quantidade desse pescado no rio e lagos só aumenta, com três vezes mais indivíduos do que há 10 anos.

Hoje, 90% das comunidades da Resex trabalham com o pirarucu, cujo quilo é comprado pela Asproc a R$ 7, o valor mais rentável de todo o Amazonas, de acordo com o seringueiro. “Em outras localidades, não passa de R$ 5,50. Isso gera uma renda importante para as famílias e evita a abertura de áreas para a agricultura comercial, mantendo as florestas”, explica o líder. Também figuram como produtos importantes na prática sustentável o quelônio, o tambaqui, a mapará, a aruanã.

Mas a extração de látex das seringueiras não foi abandonada. Segue a todo vapor na reserva e conta desde 2018 com certificado de serviços ambientais, que agrega valor ao produto. “Por ser uma atividade que conserva a floresta, cada seringueiro associado recebe R$ 6 a mais pelo quilo da borracha produzida. Com isso, o preço pago a ele sobe para R$ 18”.

A Resex do Médio Juruá é uma das mais preservadas. Entre 2008 e 2021, os moradores abriram apenas 3,44 km² de mata, um dos menores desmatamentos entre as áreas protegidas na Amazônia brasileira. Os dados são do Prodes, do Inpe. 

Manoel esclarece que as áreas são abertas apenas para agricultura de subsistência. Ele não tem dúvidas de que a forte preservação na reserva é resultado das ações sustentáveis promovidas ao longo dos últimos 25 anos e que geram alternativas financeiras às famílias.

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“Temos a clareza que a organização comunitária, o fortalecimento das instituições e a forma responsável de usar os recursos naturais colaboram com a manutenção das matas. Entendemos que a floresta é mais importante e rentável em pé. O Médio Juruá tem essa compreensão na raiz e isso só traz benefícios para as nossas vidas”, avalia.

O trabalho de Manoel na Asproc fez com que ele se tornasse reconhecido nacionalmente. Em 2005, é eleito presidente do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS) e passa a representar todos os extrativistas da Amazônia. “Ganhei força política para mobilizar melhorias para toda a Amazônia, como a concessão de direito real de uso das unidades de conservação e a implantação do programa que levou saneamento a vários seringais”.

Quanto ao cargo de gestor no ICMBio, onde atua para manter e potencializar todas as conquistas de sua terra, ele diz que fica até quando o governo ou a comunidade quiserem. “Meu nome sempre esteve à disposição da comunidade. É ela que me conduz para onde achar que eu tenho mais condições de colaborar. Se um dia ela achar que eu não colaboro mais, vou sair daqui feliz e tocar minha vida no seringal como eu sempre toquei”.

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