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Especial

Desafio histórico: O seringueiro e a partida dobrada

A borracha como ouro negro produziu fortunas e deixou atrás de si um rastro de pobreza que ainda perdura nas florestas

Os 67 anos, pai de quatro filhos, o ex-seringueiro José Avelino de Jesus Ribeiro toca sua mercearia na rua Rio Grande do Sul, no bairro Palheiral, em Rio Branco há 37 anos. Com ele, guarda uma preciosidade histórica acreana, os borderôs e anotações financeiras de quando colhia borracha para a Companhia de Desenvolvimento Novo Oeste, hoje Fazenda Califórnia composta por cinco seringais às margens do rio Envira, em Feijó.

Os documentos foram mostrados ao filho Edimar Nascimento Ribeiro, o qual, com a colega Izabel Verçosa da Silva ambos estudantes do curso de contabilidade da Fameta, os quais orientados pelo professor Robson Jorge de Lima Matos elaboraram um artigo cientifico sobre a contabilidade do seringal baseada no sistema Partida Dobrada.

O ex-seringueiro recorda que nasceu no seringal Califórnia onde desde criança ajudava o pai na lida de colher e defumar borracha. Era na verdade um aglomerado de cinco seringais a saber o Califórnia, Porto Rubim, Sobral, Bom Sucesso e Simpatia que somavam mais de 600 seringueiros.

Nessa atividade Avelino se dedicou até os 30 anos de idade quando mudou-se com esposa e dois filhos para Rio Branco fixando moradia no mesmo local onde está até hoje, aos pés da ladeira do Bola Preta.

“A gente extraía borracha, meu tio era quem fazia as anotações que guardei e tenho até hoje. Na colocação a gente plantava alguma coisa de comer, o resto vinha do barracão porque um notista passava a cada 15 dias anotando o que a gente precisava e a produção que tínhamos colhido. Depois vinha o comboieiro trazendo as mercadorias e levando a borracha pronta. Era simples assim, tinha mais crédito quem produzia mais, havia fartura de caça e o viver melhor era fruto da visão que cada um tem na vida”, garante José Avelino.

Mesmo sem ter um mestre, desde pequeno o Avelino demonstrou talento para trabalhar na madeira, a princípio produzindo tamboretes e mesas para casa, cevador de macaxeira para a casa de farinha e assim atendia pedidos de parentes e vizinhos.

especial 2Pai explica a Edimar os detalhes da contabilidade do barracão - Fotos: Juracy Xangai

“Nasci no seringal, gostava da lida na borracha e, embora não conhecesse nada fora de lá, sabia que ali o futuro era fazer o mesmo sempre. Eu queria conhecer e fazer outras coisas, então economizava dinheiro para vir para Rio Branco, mas temia pelo que iria encontrar. Me preparei com calma, o sucesso depende do trabalho e da visão que você tem da realidade. Em 1982 vim, comprei o terreno, ergui a casa criei os filhos, tenho oito netos e me sinto muito feliz”, declara.

Saudades do seringal

Avelino confessa a saudade dos igarapés com poços de água cristalina onde o passear da peixarada, o sabor das curimatãs e dourados, a fartura dos vinhos de açaí, patoá, buriti e outros, a carne de caça, o tatu comido com macaxeira.

“Durante toda minha temporada de seringueiro a borracha era mercadoria de sobrevivência, já não dava tanto dinheiro, antão a gente criava outros negócios, eu gostava da marcenaria, a maioria matava bichos como a lontra, jacaré, queixada, gato e onça para vender as peles. Conheci gente que tinha de quatro trabalhadores montando arataca só par matar gato maracajá. Foi assim até o final dos anos 70 quando proibiram a caça”.

Quando o filho Edimar pediu emprestada sua papelada para levar à faculdade, Avelino respondeu que emprestaria, desde que garantisse trazer tudo de volta. “Achei interessante deixar eles conhecerem como era o sistema de negócio que deu origem ao Acre”.

Comprar, vender e pagar ou trocar

Em todas as partes existem pessoas honestas e desonestas que usam ou se aproveitam das situações para ganhar dinheiro. Quando importadores de goma financiaram a produção da borracha abastecendo de mercadorias os barracões sede dos seringais criou-se o Aviamento, sistema que acabou quando o baixo preço da borracha deixou de dar lucro ao negócio.

Comprar e vender, trocar são artes comerciais que se perdem na antiguidade da história humana e está baseada no desejo de ter aquilo que eu não sei ou não posso fazer, então compro, troco pelo que tenho ou peço crédito.

A ideia foi sistematizada no ocidente pelo monge italiano Luca Patioli logo depois do ano 1.500, nos mundos árabe e asiático ela remonta a milênios.

A verdade por trás dos números

O que não falta são histórias de patrões que vilanizava, roubavam e até assassinavam seringueiros para ficar com o dinheiro da borracha, mas ao examinar as contabilidades, elas seguiam princípios corretos, o problema maior estaria na maneira como seringueiros e seringalistas tocavam suas vidas pessoais.

“Um dia eu conversava com meu pai sobre o controle do movimento de entrada e saída de dinheiro, o crédito e pagamento, antão ele virou-se para mim e disse – Mas isso meu tio já fazia no seringal -, então me mostrou sua pasta de documentos e notas, fiquei admirado porque era uma documentação histórica, pedi emprestado para mostrar aos professores e eles ficaram tão animados quanto eu”, explica Edimar Nascimento Ribeiro, o filho de José Avelino.

Da parte de Edimar uma curiosidade “futucava” depois de ter ouvido tantas histórias sobre a vilaneza das casas de aviação e barracões dos seringais contra os seringueiros.

especial 3Avelino recorda que o crédito dependia da cacidade de produção de cada um

“O que sempre me intrigou nas conversas e até livros de história sobre a vilanesa das casas aviadora e seringalistas, mas conseguiam ter tanta gente trabalhando para eles com maior ou menor sucesso. A verdade mesmo, é que sem eles os seringueiros simplesmente não teriam como sobreviver e produzir isolados na floresta”, esclarece Edimar.

A conclusão vem do fato de que examinados os números e dados das notas, a relação partida dobrada seguia a regras da contabilidade sem maiores variações.

“A contabilidade é uma ciência humana que acompanha a evolução da humanidade em seus negócios e na do seringal é tão justa quanto a que se usa nos escritórios de hoje. Ou seja, compra-se o necessário e paga-se pelo que se compra, assim o crédito é a confiança de vender a quem pode pagar. Qualquer coisa fora disso gera problemas como os que vemos hoje com a população endividada, quem administrar melhor o que ganha vai ter mais sucesso na vida”, adverte.

O artigo científico de Edimar e Izabel foi apresentado durante o Ciclo Cientifico da Fameta e está publicado no portaldacontabilidade.com.br.

“A apresentação do artigo chamou muita atenção dos estudantes e comunidade, o que me leva ao interesse de me aprofundar no estudo do sistema que gerou toda a economia e, porque não dizer que deu origem ao próprio Estado do Acre”, conclui Edimar.

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