Enquanto os ministros do Supremo Tribunal Federal estiverem frente às câmeras de TV desfiando os seus votos e, talvez - nunca se sabe se algum pedirá vistas - a decisão que poderá mudar o destino de milhares de presos no país,
incluindo o de maior destaque, o ex-presidente Lula, o jurista Dalmo Dallari estará atento a tudo.
Aos 88 anos, dos quais mais de 60 dedicados ao Direito - tendo formado gerações de advogados que beberam nas teorias descritas nos seus mais de 30 livros –, Dallari é o que se pode chamar de reserva moral e teórica. Influiu, formulou e opinou em todos os momentos significativos da vida brasileira. Sempre buscando a saída pelo que mais usou ao longo da profissão: a palavra.
Em março de 2016, quando o Brasil iniciava o perigoso caminho da destituição da ex-presidenta Dilma Rousseff, em uma entrevista à revista Época, detectou “um esforço obsessivo para tirar Dilma da Presidência”. Do alto da sua experiência, alertou: “É preciso buscar uma conciliação em nome do interesse público”. Para ele, àquela altura, “todos deveriam fazer uma reflexão para entrar num acordo e sair da crise política que paralisa o país. Dilma foi eleita com 54 milhões de votos. Esses grupos que vão às ruas estão muito longe da maioria que deu a ela o mandato presidencial”, sentenciava. Não o ouviram. Deu no que deu.
Sobre o que se passa na suprema corte, hoje, tem uma visão crítica quanto à exposição “cada vez mais ostensiva” dos membros do STF ao noticiário. “Em decorrência disso, setores do povo que nunca deram atenção às decisões da Suprema Corte passaram a ter grande interesse nisso e a opinar e avaliá-los. Ele aponta que, “a par disso, ocorreu também uma significativa mudança no comportamento dos vários Ministros. O excesso de publicidade, em sua opinião, gerou o que se passou a identificar como “politização do Judiciário”, ou “judicialização da política”. Para Dallari, as decisões do Supremo Tribunal Federal, de 2016, permitindo a prisão depois de decisão em segunda instância, “sem considerar a hipótese de recurso ordinário ou extraordinário, não tem base jurídica e por esse motivo essa orientação deve ser revista pela ilegalidade de suas consequências”. Veja a seguir as observações de Dalmo Dallari, jurista e professor emérito da Faculdade de Direito da USP, ao 247, a respeito deste cenário.
247- O senhor que vem de participar dos principais fatos da trajetória político/judiciária brasileira, nas últimas décadas, que avaliação faria do Judiciário desde o impeachment da ex-presidenta Dilma?
DD - Por vários motivos, ocorreram diversas mudanças relativamente ao Supremo Tribunal Federal nos últimos anos. Houve mudanças no relacionamento do povo com o Tribunal, sob diversas perspectivas. Uma delas foi a colocação muito mais frequente e ostensiva do Supremo Tribunal e de seus membros no noticiário da imprensa. Em decorrência disso, setores do povo que nunca haviam dado atenção às decisões da Suprema Corte passaram a ter grande interesse nisso e, paralelamente, a externar publicamente sua avaliação das decisões de maior impacto social, sendo frequente também a avaliação do desempenho de alguns dos Ministros do Supremo.
A par disso, ocorreu também uma significativa mudança no comportamento de vários Ministros, que passaram a externar pela imprensa suas opiniões sobre pormenores de casos julgados ou aguardando julgamento. Uma importante decorrência de tais mudanças foi o excesso de publicidade, nem sempre isenta, dos efeitos políticos e sociais das decisões da Suprema Corte, gerando o que se passou a identificar como “politização do Judiciário”, ou “judicialização da política”. Essas mudanças, a meu ver, foram muito prejudiciais ao bom desempenho e à avaliação do Supremo Tribunal. O ideal seria o retorno do antigo brocardo “Juiz só fala nos autos”, que assegurava maior tranquilidade aos julgadores, inclusive aos Ministros do Supremo Tribunal Federal, deixando-os mais distanciados de críticas e tentativas de influência em seu desempenho.
247 - Na ditadura (1964/1985), o Judiciário muitas vezes se omitiu em processos cruciais, que acabaram desembocando em mortes e desaparecimentos. Que avaliação o senhor faria daquele Judiciário? Há como comparar os dois momentos?
DD - No período ditatorial implantado em 1964 a independência dos Juízes e Tribunais também ficou comprometida, como ocorreu com todas as organizações e manifestações de interesse público. Evidentemente, a constante ameaça às liberdades, que incluíam os Juízes e Tribunais e os seus membros, foi determinante para muitas omissões. Por tais motivos, não há como fazer uma comparação entre aquela situação, em que havia constante ameaça aos Juízes e aos Tribunais, e a situação atual, em que os julgadores de todos os níveis estão mais protegidos e gozam de maior liberdade. Assim, pois, não há como fazer a comparação, cabendo, isto sim, fazer maior exigência, atualmente, quanto ao desempenho dos julgadores e à sua fidelidade às normas constitucionais e legais.
247 - O que se pode esperar do julgamento, agora em pauta, sobre o artigo art. 5º, LVII, da CF/88 [1] que diz: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória", e no art. 283 do CPP [2]?
DD - Está ocorrendo ampla discussão, dentro e fora do Judiciário, sobre o que se convencionou identificar como “condenação em segunda instância”. Do ponto de vista estritamente jurídico, as disposições do artigo 5º, inciso LVII, da Constituição, são absolutamente claras e objetivas: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. O dispositivo não poderia ser mais claro, não havendo qualquer justificativa aceitável para uma interpretação que seja contrária à afirmação da presunção de inocência até o trânsito em julgado de uma decisão condenatória, ou seja, enquanto couber algum recurso que possa modificar a decisão condenatória.
Se ainda houver a possibilidade de algum recurso, seja ordinário ou extraordinário, a decisão não é definitiva, impondo-se o respeito à norma constitucional que assegura a presunção de inocência. A alegação de que a decisão em segunda instância já torna definitiva a condenação é juridicamente falsa, não devendo, portanto, ser sustentada por quem reconhecer e respeitar a Constituição como norma jurídica superior e vinculante.
247- Em 2016 o Supremo Tribunal Federal ao analisar duas ações que questionavam as detenções antes de se esgotarem as possibilidades de recurso, o chamado "trânsito em julgado", permitiu (por 6 X 5) as prisões após condenação por um tribunal da segunda instância. Este entendimento levou Lula à prisão. Podemos contar agora com um novo entendimento? Como ficará, em sua opinião, a situação jurídica do ex-presidente Lula?
DD - Em face do que se tem amplamente demonstrado – com absolutamente sólida e clara fundamentação jurídica- as decisões do Supremo Tribunal Federal, de 2016, permitindo a prisão depois de decisão em segunda instância, sem considerar a hipótese de recurso ordinário ou extraordinário, não tem base jurídica e por esse motivo essa orientação deve ser revista pela ilegalidade de suas consequências.
Em decorrência disso, todos os condenados que foram colocados na prisão após a condenação em segunda instância, quando ainda havia a possibilidade de recurso, devem ser postos em liberdade, a menos que ocorra um dos pressupostos legais para a prisão preventiva. Seja quem for o condenado, essa é uma decorrência do restabelecimento do absoluto respeito aos princípios jurídicos fundamentais e à norma constitucional que consagra o princípio da presunção de inocência.
247- Caso seja derrubado este entendimento, como se espera (fala-se até no placar de 7 X 4), que desdobramentos isto terá? A situação está batendo muito na tecla, para efeito de opinião pública, de que criminosos ferozes e estupradores serão soltos, e que o combate à corrupção será desmontado. Qual a sua opinião a respeito?
DD - O reconhecimento e a aplicação da norma constitucional consagrando a presunção de inocência devem ter consequências práticas, levando à libertação dos que foram e continuam presos contrariando tais dispositivos. A alegação de que essa correção da inconstitucionalidade irá favorecer a libertação e a impunidade de “criminosos ferozes e estupradores” não tem qualquer consistência.
Com efeito, a legislação processual penal estabelece os casos em que pode ser efetuada a prisão preventiva do acusado ou condenado, antes do trânsito em julgado de decisão condenatória. Com efeito, é expressamente prevista a prisão preventiva nestas hipóteses: para garantir a ordem pública e econômica se houver elementos que demonstrem que se o acusado for mantido solto irá praticar crimes contra a ordem pública, causando danos irreversíveis à sociedade; outra hipótese de prisão preventiva, legalmente prevista, é se houver grande conveniência de manter preso o acusado, para facilitar e assegurar a instrução penal, evitando a destruição ou a perda de elementos probatórios; cabe ainda a prisão preventiva se isso for reconhecido como necessário para assegurar o cumprimento de eventual decisão condenatória. Assim, pois, estão legalmente previstas as hipóteses de restrição ao pleno respeito à presunção de inocência.
247 - Lula solto neste julgamento do STF sobre a prisão em 2ª instância, poderá preservar os seus direitos políticos?
DD - Se ocorrer a soltura de Lula em decorrência do reconhecimento de desrespeito à norma constitucional da presunção de inocência, ele estará em pleno gozo de seus direitos políticos. Isso porque não terá ocorrido qualquer fato que dê fundamento à suspensão de seus direitos políticos.
247 - Há uma CPI em curso, para apurar o uso de fake news nas eleições presidenciais, e caixa 2, com o uso de empresas estrangeiras nesta prática, pela chapa Jair Bolsonaro/Hamilton Mourão. Esta questão foi levantada às vésperas da eleição presidencial, mas foi postergada pelo TSE, que preferiu abrir processo, com a morosidade de sempre. Agora, dependendo do resultado da CPI, podemos ter a anulação da chapa? Quais as consequências jurídicas disto, e como ficaria o quadro sucessório? Seria chamada uma nova eleição?
DD - Em tese, prosseguindo a ação e concluindo no sentido de afirmar a ocorrência de fatores que tornam nula a eleição, isso tem consequências sobre o exercício do mandato, que será, então, interrompido, estabelecendo-se a necessidade de nova eleição.