Com alianças com facções locais e grupos criminosos estrangeiros, PCC desafia CV e disputa domínio da Amazônia, mostra estudo
São Paulo – Batizada pelo Comando Vermelho (CV), Ana Klicia deixou Manaus, no Amazonas, para cumprir uma missão sigilosa. Precisava seduzir Izaías Araújo Sampaio, o Zazá do Mangue, uma das lideranças do Primeiro Comando da Capital (PCC) de Boa Vista, em Roraima, e atraí-lo para uma emboscada. O plano, no entanto, fracassou. Descoberta, a mulher teve o pescoço dilacerado a golpes de faca no chamado “Tribunal do Crime”.
O episódio aconteceu em meados de 2021 e revela só uma parte do cenário de guerra que se espalhou pelos nove estados da Amazônia Legal, desde que o PCC decidiu desafiar o domínio dos rivais cariocas e avançar sobre a região. O território é considerado estratégico para o tráfico de cocaína e skank (maconha mais forte), principalmente com destino Ásia e Europa, além de abastecer o mercado interno.
Para tomar a Amazônia, o plano dos paulistas inclui brigar por cidades da fronteira, investir em narcogarimpos e até selar alianças provisórias com organizações criminosas internacionais – caso do Tren de Aragua, a maior facção venezuelana, famosa por decapitar seus inimigos.
O avanço do PCC e a presença do crime organizado estrangeiro na disputa estão demonstrados (veja acima) na “Cartografia da Violência na Amazônia”, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado na última quinta-feira (30/11). Segundo a pesquisa, ao menos dez facções nascidas na Venezuela, Colômbia, Bolívia e Peru também atuam na fronteira ou em território brasileiro.
Facções na Amazônia
Com florestas densas e áreas recortadas por rios, a Amazônia Legal tem mais de 5 milhões de km² e faz fronteira com sete países. Permeada por atividades ilegais, como extração predatória de minerais e madeira, a bacia amazônica já era usada para o tráfico de drogas pelo menos desde a década de 1980.
É a partir de 2007 que o narcotráfico ganha força, com o surgimento da organização criminosa Família do Norte (FDN), em Manaus, que passou a controlar o escoamento da droga produzida na Colômbia e no Peru, via rota do Rio Solimões. Esse domínio foi exercido por facções regionais até 2016, ano em que foi deflagrada a guerra entre o PCC e o CV que mudou o tabuleiro da criminalidade no Brasil.
Na ocasião, o PCC havia executado Jorge Rafaat, o “Rei da Fronteira”, para controlar a divisa brasileira com o Paraguai. Sem acesso à sua principal fonte de drogas e armamentos, os cariocas tiveram que procurar rotas alternativas e decidiram propor uma aliança com a FDN, dando início ao seu processo de domínio na região Norte.
Em pouco tempo, o CV conseguiu montar bases no Pará e no Amazonas. De lá, o grupo se espalhou pelos outros estados até decidir romper com a FDN em 2018. Marcado por episódios de extrema violência principalmente nas periferias das capitais, o fim do pacto também abriu espaço para o PCC se lançar com mais força na Amazônia.
Investida do PCC
Hoje, a FDN é considerada praticamente extinta. Do conflito com os cariocas, começaram a surgir facções menores, como o Cartel do Norte (CDN) e o Comando Classe A (CCA), cujos membros foram cooptados pelos paulistas.
“Não é que os líderes do PCC em São Paulo se mudaram para a Amazônia: a facção incorporou esses grupos locais a partir de batizados no sistema prisional”, afirma Aiala Couto, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e diretor do Instituto Mãe Crioula. “Na verdade, o PCC representa todos aqueles que não querem ser denominados como CV.”
Os pesquisadores mapearam que o PCC, atualmente, está presente em 94 das 178 cidades onde se sabe que há atividades do crime organizado na Amazônia. Destas, a facção controla 28 locais. Por sua vez, o CV aparece em 127 municípios, com domínio sobre 58 deles, mas já precisa disputar localidade em que até então era hegemônico.
O estudo mostra ainda que mais da metade da população (59%) na Amazônia Legal agora vive em cidades dominadas por alguma facção ou sob disputa do crime organizado. O resultado é o altíssimo patamar de homicídios. Nesses municípios, a taxa de mortes violentas chega a ser até cinco vezes maior do que a média nacional.
Disputa pela fronteira
Os cariocas são pressionados pela expansão do PCC que ocorre “de dentro para fora” e “de fora para dentro” do Brasil. Além do avanço doméstico registrado nos últimos três anos, os paulistas têm conexões mais fortes nos países vizinhos.
Um exemplo dessa dinâmica acontece no Amapá. Embora a faixa brasileira da fronteira esteja sob domínio do CV, há grupos ligados ao PCC posicionados do outro lado, no Suriname e na Guiana Francesa.
O estudo descreve a complexidade do cenário na fronteira assim: “Não há, aparentemente, um grupo que possa ser considerado hegemônico em termos de presença e influência transnacional. O grupo que mais chega perto desse patamar é o Primeiro Comando da Capital – PCC, que, além do domínio territorial de áreas no interior do Brasil, possui presença significativa na Bolívia, na Guiana, na Guiana Francesa, no Suriname e na Venezuela”.
O único estado da Amazônia considerado dominado pelo PCC é Roraima. Lá, uma das estratégias da facção foi aproveitar a crise humanitária na Venezuela para recrutar imigrantes que entravam no Brasil pela fronteira em Pacaraima (RR). Em 2021, o Ministério Público de Roraima levantou que 740 venezuelanos já haviam sido integrados à facção paulista.
A crise migratória também possibilitou a chegada do violento Tren de Aragua, grupo criminoso que nasceu na prisão de Tocorón, na Venezuela, em 2005, e se aliou ao PCC em Roraima.
“Há relatos de acertos com o PCC ainda no exterior, mas esses acordos são voláteis”, afirma Rodrigo Chagas, pesquisador do Fórum. “Embora já existam comentários de algumas disputas territoriais, são grupos que aparentemente fizeram acordos no atacado.”
A pesquisa registra ainda a presença das facções Trem de Guayana e Sindicato, também oriundas da Venezuela, em Roraima. Dissidentes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), quatro grupos colombianos – as Frentes Armando Ríos, Carolina Ramírez, Acacio Medina e Segunda Marquetalia – atuam no Acre e no Amazonas. Completam a lista grupos bolivianos menores.
Narcogarimpo
Pelos lucros envolvidos e as facilidades para lavar dinheiro do tráfico, a exploração do ouro é outra atividade que desperta especial interesse do PCC na Amazônia. Em janeiro de 2022, na Operação Narcos Gold, a Polícia Federal (PF) indiciou 29 criminosos ligados à facção que eram suspeitos de movimentar mais de R$ 1 bilhão, entre 2017 e 2020, em garimpos na região oeste do Pará.
Segundo pesquisadores, fugitivos do sistema penitenciário tradicionalmente usavam os garimpos como esconderijo e ofereciam serviço de segurança armada. Com o aumento de batismos nas cadeias, a chegada de faccionados impulsionou a venda de cocaína e ofertas de prostituição nesses locais – marcados pela rotina extenuante da jornada de trabalho.
A presença do PCC foi se intensificando “pouco a pouco”, segundo o estudo. Hoje, o grupo também usa os garimpos, geralmente localizados em áreas de mata fechada, como ponto logístico do tráfico e aproveita a infraestrutura, com pistas clandestinas de pouso e decolagem, para transportar grandes quantidades de droga.
A investida também deixa rastro de violência. Nas primeiras semanas de maio, pelo menos 17 pessoas foram mortas em uma semana na Terra Indígena Yanomami, em Roraima, em ataques supostamente ligados ao PCC. Uma das vítimas era uma mulher, com sinais de estrangulamento e violência sexual, encontrada em uma vala, próximo ao local em que mais oito corpos de garimpeiros foram achados, na comunidade Uxiú.