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“Há milicianos tentando impedir a gente”, diz Caco Barcellos

Jornalista comenta o dia a dia no “Profissão Repórter” e os desafios que enfrenta no trabalho

Das várias conexões importantes para uma pessoa se sentir viva e ativa, a mais imprescindível é a conexão humana. Prestes a completar 72 anos no próximo dia 5 de março e 50 de carreira em 2022, Caco Barcellos acompanha a revolução tecnológica que influencia na prática do jornalismo, adaptando-se bem a ela. Na atual temporada do “Profissão repórter’’, por exemplo, que estreou na semana passada, ele passa a se filmar em algumas matérias, um desejo antigo. Mas o intuito é estabelecer um contato ainda mais natural com as pessoas, já que o que ele mais gosta de fazer é contar histórias, ele gosta de gente.

“Pego metrô, ando de ônibus, e isso só enriquece, porque as pessoas querem falar”, diz esse observador, que tem como marca voltar seu olhar para realidades duras que muitos preferem não ver. Aqui, Caco compartilha prazeres e dificuldades de sua rotina, falando do desejo de trabalhar até o último dia de vida, driblando fake news, milicianos ou qualquer outra barreira: “Problema mesmo é a morte. Vou deixar de ver tudo isso? Acho uma sacanagem!”.

No “Profissão repórter’’, você cobre de perto a realidade de pessoas marginalizadas pela sociedade, grupos ignorados pelo poder público. São histórias tristes, pesadas, e mesmo assim você se define como uma pessoa otimista. Como manter esse otimismo?

É uma questão de estratégia de sobrevivência. Eu quero trabalhar até o último dia da minha vida, acreditando que nosso trabalho, por mais singelo que seja, tenha relevância relativa. Continuo achando que existe um movimento de transformação no mundo e adoraria participar dele. Agora, por exemplo, temos uma ameaça de conflito entre Rússia e Ucrânia. Certamente, no início da minha profissão, iríamos esperar um super-repórter chegando lá para contar essa história e se juntar a todo mundo. Hoje, tenho certeza de que as câmeras vão mostrar primeiro sobre as bombas que estão lançando de um lado para o outro. E nós vamos chegar depois para contar por que a bomba está caindo ali e não em outro lugar. Isso nenhuma câmera vai explicar. Sempre será um repórter. Temos que tirar da nossa cabeça a pressa do furo, do contar primeiro, da exclusividade. Cada vez mais o que a gente tem é que contar melhor. Por isso eu sou otimista. Porque nosso trabalho sempre será necessário. Por mais que a gente tenha esperança num mundo melhor e frequentemente isso não aconteça como a gente deseja, eu tenho parceiros jovens no trabalho, tenho meus filhos (Ian, Iuri e Alice)... Eles continuarão por mais tempo desejando o melhor para as pessoas.

Você se sente um solitário (ou quase) praticando esse tipo de jornalismo hoje, focado nas classes menos favorecidas?

Talvez você tenha razão, mas por outro lado entendo meu trabalho como complementar. Se todo mundo fizesse o que fazemos, talvez não teríamos esse espaço que temos. Se a sociedade está sendo contemplada com o hard news, a gente vai procurar aprofundar outras coisas. Já no meu dia a dia, não me sinto solitário. Estou sempre cercado de muita gente, sou sensível ao carinho das pessoas. Nas comunidades, o povo grita: “Já vem o cara de cabelo branco que gosta de entrar na nossa casa’’. Fico encantado com a confiança que as pessoas têm na gente. O “Profissão repórter’’ não existiria se as pessoas nos impedissem de entrar em suas casas, circular nas ruas. Agora há uns grupos de milicianos aí tentando impedir a gente, grupos armados... Mas a gente tem que estar lá! Existe o risco, mas a gente tem que desviar e ir lá, protegendo nossa equipe.

Você se depara com muitas situações de medo?

O país vive uma polarização. Na verdade, não só no Brasil, mas em toda parte, a imprensa tem sofrido ataques, sobretudo pelos negacionistas. Nós ficamos mais expostos na medida em que qualquer indivíduo hoje se torna um comunicador nas redes sociais. A gente é alvo disso porque nosso trabalho é público. Mas, para essa temporada, por exemplo, produzimos uma matéria sobre moradias precárias. Circulamos por toda a Baixada Fluminense e não ouvimos qualquer ofensa. Conversei com muita gente pobre, em favelas, alguns um pouco críticos, mas sempre com respeito, sem ofensa. A maioria, na verdade, desejava muito a nossa presença. Eu sinto um imenso carinho.

Recebem você com café?

Muito! E geralmente cheio de açúcar, o que não gosto (risos). Mas tomo com o maior prazer, pois é feito com dedicação. Quando não oferecem, peço. É um modo de dar uma respirada.

Você escreveu “Rota 66’’, sobre a violência policial em São Paulo, em 1992. Também viveu a época da ditadura e acreditava que, com o fim dela, a violência acabaria. Mas hoje temos um líder que defende armamento, a polícia segue matando, um jovem congolês é assassinado a pauladas sem que ninguém reaja (Moïse Kabagambe, espancado em um quiosque na Barra da Tijuca). Como respirar?

Infelizmente a violência não acabou, a gente vai se decepcionando. As coisas não acontecem com a velocidade que a gente deseja. Sobre o episódio do jovem congolês, isso tem a ver também com a violência do estado, que é muito truculento. Ao longo de cinco séculos e 22 anos, nunca se pensou numa maneira eficiente de fazer segurança pública. É sempre pelo caminho da extrema violência. E o estado não mata sozinho. A sociedade brasileira tem dentro dela uma cultura de violência preocupante. Tanto a brutalidade das pauladas no jovem do Congo me impressionou quanto a quantidade de pessoas que assistiram e nada fizeram. Por que ninguém gritou “parem com isso’’? Dez pessoas são mais que três pessoas. Como é que não tem gente na sociedade gritando ‘‘chega’’? Estão desde 1970 matando gente todo dia. Se fosse verdade que essa política de confronto é eficiente, Rio e São Paulo seriam um paraíso.

Por que as pessoas não gritam?

Não sou eu que tenho que dar essa resposta. Eu cumpro minha tarefa com dificuldade, que é contar histórias com afinco. Enquanto a gente tem concorrente para todo lado desmoralizando nossa profissão, produzindo notícias falsas. Aí digo: ‘‘Olha aqui a gente trabalhando debaixo de sol e de chuva, nas enchentes, tudo para contar para vocês uma história, porque somos profissionais e nosso dever é esse’’. A luta de convencimento para termos uma sociedade mais politicamente organizada é uma tarefa para muitos, não só para nós jornalistas.

O “Profissão repórter’’ existe desde 2006. Você imaginou que duraria tanto tempo?

Sinceramente eu comemoro cada semana o fato de ter esse privilégio de contar história pra tanta gente. Lembro quando comecei num jornal, vendendo de mão em mão, na imprensa alternativa. E aí vem a TV, que chega a milhões. Então eu recordo a minha infância, quando eu contava história para duas ou três pessoas no bairro e isso já me deixava tão feliz...

E como é contar as histórias tristes? Você já chorou, Caco?

Eu escondo bem. Tenho vergonha, essa coisa babaca de que macho não pode chorar. Isso está impregnado de alguma forma. Mas eu choro demais. Muitas vezes, eu entrava no cinema para ver um filme e chorar. Quando estava muito tenso, fazia isso. Como cinema anda meio fora de moda, choro no sofá de casa. Assisti agora à serie sobre Nara Leão e chorei muito com aquela voz, com aquela guerreira.

São 50 anos de carreira em 2022. Qual o balanço?

Ainda não deu tempo de fazer (risos). Nunca pensei no que vou fazer mês que vem. Parece frase de efeito, mas é verdade. Repórter depende dos outros.

Estar em plena atividade é um dos segredos para manter toda sua jovialidade aos 71 anos?

Isso é um projeto que começa em 1971, quando descobri a macrobiótica, levando a vida de modo mais saudável, com a alimentação baseada na natureza, sem agrotóxicos. Vem dando certo! De acordo com o último exame que fiz, minha idade metabólica é de 53 anos. Leio muito, até bula de remédio. E também pratico esportes, jogo futebol. Nem falamos mais de idade, falamos de energia. Logo seremos um país de maduros, vamos conviver com essas pessoas. Esperamos que as ideias não envelheçam.

Um cara como você que não pensa no que vai fazer amanhã pensa na morte?

Eu tenho problema com a morte desde a infância. É muito tempo na terapia. Vou deixar de ver tudo isso? Acho uma sacanagem! Na verdade, é um lamento por perceber que está se aproximando a hora de partir, eu não me conformo com isso.