Mais de duas mil mulheres estão reunidas na 1ª Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, que conta com delegação do Acre
As mulheres indígenas estão cada vez mais organizadas na luta pelos seus direitos. Se no 10º Acampamento Terra Livre (ATL) ocorrido em abril deste ano elas foram imponentes exigindo a demarcação das Terras Indígenas (TI) e o fim do ataque aos povos, agora elas estarão reunidas na 1ª Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, que acontece nesta terça-feira, 13, em Brasília, não só para denunciar o massacre das populações indígenas, mas também para juntar-se a outras mulheres urbanas, rurais e de comunidades tradicionais na Marcha das Margaridas (14), em um grande exemplo de sororidade.
Na manhã desta segunda-feira, 12, as mulheres indígenas fizeram um grande ato em defesa das políticas de atendimento à saúde indígena com marcha até a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e depois ocuparam o prédio da secretaria. A mobilização iniciou dia 9, com o 1º Fórum Nacional das Mulheres Indígenas. Um dos principais objetivos do fórum é fortalecer o movimento indígena brasileiro e as organizações das mulheres indígenas em suas aldeias, territórios, estados e no nível nacional.
“Nosso foco é organizar o movimento de mulheres com uma base politizada”, explica a militante e estudante universitária Alana Manchineri, 29 anos, da Terra Indígena Mamoadate. Do Acre uma delegação de 25 mulheres indígenas de oito povos está na capital federal.
A voz delas
Conhecida como uma das primeiras pajés mulher no Brasil, Hushahu Yawanawa da TI do Rio Gregório, tornou-se em 2006 uma liderança espiritual feminina do seu povo e contribuiu de forma decisiva para a preservação das práticas culturais Yawanawa. Antes, apenas homens eram candidatos a cumprir a rigorosa dieta para se torna um pajé e participar de cerimônias com Uni (ayahuasca).
A exemplo de Hushahu, o protagonismo da mulher indígena no Acre tem aumentado nas TIs, mas também em espaços institucionais e políticos. Nas reuniões de tomada de decisões é indispensável a voz da representante das mulheres indígenas. Outra forma de participação ativa também se dá por meio das associações e cooperativas, seja nas comunidades ou regionais.
Nas cidades, são as instituições de ensino os espaços mais aspirados para as que saem das aldeias. Alessandra Severino Manchinery, 36 anos, da TI Mamoadate, foi a primeira mulher indígena no estado a cursar Geografia na Universidade Federal do Acre (UFAC) e a entrar em um programa de mestrado. Ela recebeu o título de mestre no início de agosto e também se dedica à estudos sobre gênero.
“Durante o mestrado eu entrei em um grupo de pesquisa de gênero na Universidade Federal de Rondônia para contribuir com a realidade da mulher indígena, levando essa discussão para a minha aldeia. Acompanhando esse grupo pude conhecer ainda mais sobre a violência velada contra a mulher indígena, principalmente do Estado”, lembra Alessandra. Para ela a marcha será um importante marco na luta contra a invisibilidade. “É o momento de dizer basta para esta desgovernabilidade em relação às indígenas”, protesta.
Há um ano Alessandra participava do Encontro de Mulheres Indígenas no Acre, realizado em parceria pela Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-Acre), Organização de Professores Indígenas do Acre (OPIAC) e a Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre (AMAAIAC). Foram 70 mulheres representantes de diferentes povos da Amazônia brasileira e da região de Madre de Dios, no Peru, que trocaram experiências fortalecendo a participação das indígenas na vida produtiva, cultural, espiritual e política dos povos. Neste ano será realizado o segundo Encontro de Mulheres Indígenas no Acre, sob coordenação das três instituições.
Mulher indígena resiste e floresta persiste
“Território: nosso corpo, nosso espírito” é o tema da marcha e representa o que há de mais caro para as mulheres indígenas: a mãe natureza. “O tema vem da nossa força, porque nós somos a floresta, a floresta é a nossa mãe e mãe se cuida”, pontua Francisca Yaka Shawãdawa, liderança Shawãdawa, ex- coordenadora da Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC).
Francisca Yaka conta que, antes, as mulheres cuidavam apenas da casa, do artesanato e das pequenas plantações. “Hoje o que queremos mesmo é garantir a sustentabilidade e os direitos dos povos indígenas. Manter a floresta em pé é o que fazemos desde tempos imemoráveis, um trabalho de mitigação do aquecimento global. Sem isso, todo nosso trabalho de gestão territorial e segurança alimentar é em vão, não existirá mais nada”, alerta Yaka, que trabalha no Instituto de Mudanças Climáticas (IMC). “O que precisamos é do território demarcados e preservados, pois é de lá que vem o remédio, o alimento e a vida”, completa.
Aldenira Dani, Huni Kuĩ da TI Ashaninka/Kaxinawa do Rio Breu, se mostra preocupada com a perda das roças e sementes. Conta que hoje o clima está mudando. “Antigamente não era assim, chovia nos meses certos e nós não perdíamos roçados. Hoje está diferente! Fui pesquisar sobre essa mudança e descobri que é porque os fazendeiros desmatam”, descontenta-se Aldenira.
A preocupação reflete a atenção das mulheres com o seu cotidiano e a importância da organização, já que são justamente elas as que mais sofrem os impactos da violência do governo brasileiro contra os povos indígenas. O desmonte da Fundação Nacional do Índio (Funai), o sucateamento da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), as ofensivas contra o Fundo Amazônia e a ingovernabilidade no Ministério do Meio Ambiente (MMA), bem como as recentes e violentas invasões de garimpeiros e madeireiros em Territórios Indígenas no Norte e no Centro-Oeste do país (Waiãpi no Amapá e Kinikinawa no Mato Grosso do Sul) são pautas urgentes que ganharão reforços nas trincheiras femininas.
Somada a estas, há ainda o alarmante crescimento de 278% de desmatamento na Amazônia em julho deste ano, segundo dados do Deter (Detecção de Desmatamento em Tempo Real), sistema do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). No Acre, embora o desmatamento em junho tenha aumentado 5% em relação a 2018, segundo dados do Boletim do Desmatamento (SAD) do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), as Terras Indígenas continuam praticamente intactas.
Entre os anos 2007 e 2017 o desmatamento na maioria das TIs e Unidades de Conservação (UCs) no Acre se manteve em menos de 3%. O número é do estudo “Mapeamento e Estimativa da cobertura florestal em 18 TIs e 7 UCs do Acre” produzido pelo Setor de Geoprocessamento (SEGEO) da CPI-Acre, que colheu dados por meio de geotecnologias e técnicas de sensoriamento remoto (via satélite). Das 18 TI estudadas, 11 tiveram índices de desmatamento abaixo de 1%, o que significa que, durante 10 anos, mais de 99% de florestas foram preservadas somente nas TIs.
Na aldeia, as mulheres têm um papel importante para a estabilidade desses números. O sucesso dos planos de Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) e da segurança alimentar mostram o valor da presença feminina no cumprimento dos acordos: são as mulheres que guardam sementes tradicionais, cuidam das plantações, trabalham nos roçados e mantém as hortas próximo das casas; cuidam de práticas ancestrais desde o nascer, o parto, à ritos de resguardo, trabalho com ervas medicinais, artesanato, aos cuidados de rotina das comunidades, dentro de uma divisão de trabalho entre mulheres e homens.
Na aldeia ShaneKaya, Terra Indígena Katukina/Kaxinawá, município de Feijó, dos 80 moradores, apenas 10 são do sexo masculino. “Isso faz com que na aldeia, o comando seja das mulheres. Mas não é só nisso que nos igualamos, pegamos no pesado também, cortamos madeira, limpamos todo o terreno do plantio, trabalhamos juntos”, explica Edna Shanenawa, assessora política da aldeia. Ela foi a primeira mulher no Acre a assumir a presidência do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi), hoje extinto pelo decreto 9.759, que acabou com todas as instâncias de participação social ligadas ao governo federal. O conselho acompanhava a execução da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI).
Além do foco na segurança alimentar e na conservação do território, a Associação de Mulheres da Aldeia ShaneKaya trabalha com o fortalecimento cultural captando recursos para a realização de festivais voltados para o universo feminino, vivência com parteiras e bioconstruções.
Edna lembra como o pai Shuayne Shanenawa, na época cacique, passou a liderança para as filhas. “Meu pai criou as filhas para liderarem e quebrou isso de que somente homens podiam comandar uma aldeia”, recorda. No dia 10 de agosto Shuayne, que atingiu o grau de tuxawa do povo Shanenawa, fará 99 anos. “Não estarei com meu pai no aniversário, mas sei o quanto ele me apoia. Quem está indo para a marcha não é somente a Edna Shanenawa, mas também o meu tuxawa que eu levo dentro de mim”, diz Edna, sentindo sua ausência.
A 1ª Marcha Nacional das Mulheres Indígenas é organizada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) com parcerias e financiamentos coletivos. Pautas como garantia dos direitos indígenas, demarcação de terras, segurança alimentar, a visibilidade de indígenas LGBTs, reforma da previdência, saúde e educação indígena estão sendo discutidas em Brasília por mulheres representantes da grande maioria dos 180 povos indígenas no país. Na quarta-feira, 14, as indígenas se juntarão a outras 100 mil mulheres na Marcha das Margaridas, que ocorre uma vez a cada quatro anos desde 2000, um dos maiores eventos feministas da América Latina.
Assessoria de Comunicação/CPI-Acre