O entrosamento demonstrado entre o presidente Jair Bolsonaro e o ex-presidente Michel Temer com a divulgação da carta pública em que o atual inquilino do Palácio do Planalto recua dos ataques aos demais Poderes vai além do que está no texto.
Paternidade
Após o encontro em que a chamada “Declaração à Nação” foi gestada, os dois confirmaram que o conteúdo é praticamente todo da lavra de Temer. Não por acaso: ambos pretendiam ganhar com isso.
Risco premeditado
Bolsonaro já imaginava que a cartada, cujo objetivo era baixar a temperatura da crise institucional, poderia irritar parte de seus mais fieis apoiadores, favoráveis à radicalização do discurso, sobretudo contra o Supremo Tribunal Federal (STF).
Versão combinada
Para serenar os ânimos de mais uma escalada de problemas, ele combinou com o ex-presidente uma narrativa que viria a ser contada nas horas seguintes pelos dois lados, ou seja, pelo marqueteiro Elsinho Mouco, que trabalha com Temer, pelo ex-presidente e pelo próprio chefe do Executivo. Ficou acordada a estratégia de se divulgar que paternidade quase integral do comunicado era mesmo de Temer.
Sinopse
Publicamente o ex-presidente contou ter rascunhado de próprio punho, com a ajuda do marqueteiro, a tentativa de apaziguar a crise entre Poderes. Bolsonaro confirmou a versão durante sua tradicional transmissão ao vivo pela internet das noites de quinta-feira.
Colheita
Ao fim, Temer colheu os louros de ter sido o autor do texto pacifista, enquanto Bolsonaro teria uma suposta saída para amainar o inconformismo de alguns do seus aliados, a de que cedeu a apelos e avalizou o comunicado, mas não o redigiu. A ideia parece ter funcionado mais para um do que para outro. Bolsonarou passou as últimas horas sendo cobrado por integrantes de sua base, principalmente nas redes sociais, sobre o recuo.
Roteiro
“Fiz uma nota hoje (anteontem) que muita gente me criticou, que eu devia fazer isso e aquilo[...]. Você quer gasolina mais barata, não quer? Gás. É tudo indexado. Às 3 horas (15h) publicamos a nota e a bolsa subiu 2%, 2.800 pontos e o dólar caiu 2%. Espero que continue caindo amanhã — afirmou, Bolsonaro durante a “live”, antes de classificar a carta como “nada demais”: — Comecei a preparar uma nota. Liguei ontem à noite para o Temer, e ele veio hoje aqui. Conversamos por uma hora, duas vezes. Ele colaborou com algumas coisas na nota e eu concordei e publiquei. Não tem nada demais ali”, enfatizou Bolsonaro.
Cupido
Durante o encontro com Temer no Planalto, o ex-presidente intermediou uma conversa por telefone entre Bolsonaro e o ministro do Supremo Alexandre de Moraes, relator dos inquéritos em que o presidente é investigado na Corte, e principal alvo de seus disparos nos últimos meses. Segundo interlocutores, ao seu estilo, Bolsonaro tentou quebrar o gelo com uma brincadeira. Disse desejar que as diferenças entre eles deveriam se limitar apenas ao futebol: Bolsonaro torce para o Palmeiras e Moraes é corinthiano.
Redução de danos
Em sua “declaração à nação”, o presidente da República procurou conter os estragos causados pelas ameaças e ofensas contra o STF durante os atos de 7 de setembro, quando chamou Alexandre de Moraes de “canalha” e afirmou que não cumpriria medias judiciais proferidas por ele. Ele atribuiu os ataques a um arroubo proveniente do “calor do momento”.
Fala de improviso
Antes de o presidente acelerar na radicalização com os discursos do Dia da Independência, porém, não lhe faltaram pedidos para que evitasse erguer novas trincheiras. Ele próprio chegou a dizer, mais de uma vez, inclusive em suas lives, que os atos seriam pacíficos. Noutras ocasiões, sobretudo nos dias anteriores ao ato, passou a emitir sinais difusos, sinalizando que poderia disparar na direção dos ocupantes de outros Poderes da República, como acabou ocorrendo.
Bastidores
Embora tenha alegado em sua carta que não planejou previamente adotar o tom beligerante visto na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, e na Avenida Paulista na última terça-feira, o presidente da República não acolheu a sugestão de preparar previamente um discurso, de tom ameno. O ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, chegou a levar ao presidente um texto redigido por um profissional de comunicação da sua confiança. A ideia era evitar justamente o que se viu acontecer, mas Bolsonaro rechaçou a possibilidade de ler o que falaria para seu público, do alto de carro de som, e acabou lançando mão do improviso, como faz quase sempre.
Alerta
O economista Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central, faz uma leitura mais cautelosa do recuo de Jair Bolsonaro após o 7 de setembro. “Eu interpreto que a ausência de violência nas ruas pode ter sido tática. Não posso acusar ninguém, mas era a minha expectativa que, se tivesse havido violência, teria sido algo muito negativo para o governo”, diz ele, em entrevista à Folha de S. Paulo.
Causa e efeito
“Como os índices de aprovação do governo vêm caindo e parecem muito restritos ao grupo mais próximo, e insuficientes para uma reeleição, começa a ficar claro que podemos estar diante de um comportamento de fera ferida, de fera acuada. E isso é sempre um perigo Meu receio a essa altura é que isso será uma constante daqui até o fim deste governo”, aponta o ex-comandante do BC na gestão FHC.
Efeitos colaterais
E segue: “Do ponto de vista econômico, é absolutamente paralisante. De um lado, temos um governo engessado porque não prioriza direito o gasto, e não é de hoje, fazendo com que o investimento público seja muito baixo, com sérios problemas de qualidade. E isso começa a impactar nos temas clássicos. No crescimento e na desigualdade, num círculo vicioso. É assim que vejo essa história toda, terrível”, diz ainda o economista.