30 de agosto de 2002, uma sexta-feira, 18 horas e três segundos, no horário local. Trabalhadores que estavam encerrando mais um dia
de atividades numa fazenda do Ramal do Chapada, divisa entre os municípios de Rio Branco e Bujari, pouco menos de dez quilômetros da pista do aeroporto internacional “Plácido de Castro”, ouvem uma explosão e em seguida veem um clarão gigantesco de fogo iluminando a pastagem e a floresta para revelar, em detalhes e em todos os tons, o horror daquilo que seria uma das maiores tragédias da aviação no Acre: a queda de um avião da Rico Linhas Aéreas, que deixou 23 mortos e oitos feridos em estado grave. Era o voo 4823, que fazia a linha Cruzeiro do sul, Tarauacá e Rio Branco. Era também agosto, o chamado mês do desgosto e das grandes tragédias nacionais.
A maioria dos mortos, incluindo o então deputado federal Ildefonço Cordeiro, pai do atual prefeito de Cruzeiro do Sul, Ilderlei, era composta de cidadãos do Juruá que se deslocavam para Rio Branco em busca de diversão ou negócios na última noite da Expoacre daquele ano. A bordo do avião também estavam funcionários públicos com atividades em Cruzeiro do Sul, que voltavam para casa, em Rio Branco, como o então superintendente da Funasa (Fundação Nacional de Saúde), o paraibano Ailton Oliveira, uma das vítimas mais mutiladas naquela tragédia iniciada numa tarde de um por de sol magnífico a partir do qual ninguém seria capaz de prever que, horas depois, uma tempestade fosse capaz de derrubar o EMB-120 Brasília, uma aeronave de fabricação brasileira pela Embraer, turboélice bimotor, pressurizado, de alta performance, capaz de transportar até 30 passageiros, muito utilizado na aviação regional.
Sua autonomia de voo era de 1.750 km, com 20 metros de comprimento e outros 20 de envergadura e capaz de velocidade de cruzeiro de 552 km/h. Na época, seu valor era estimado entre US$ 8,5 mil a US$ 11 mil. Tinha 30 assentos, mas, naquele dia, transportava 31 pessoas, entre passageiros e a tripulação, incluindo o piloto e o co-piloto, respectivamente, Paulo Roberto Tavares e Paulo Roberto Nascimento, e uma comissária de bordo. Não houve sobreviventes entre os tripulantes. Minutos antes do choque do avião com uma arvore seca, no meio do pasto da “Fazenda dos Alves”, no Ramal da Chapada, os comandantes do voo travaram o seguinte diálogo com a torre de controle, segundo vai registrar a chamada “Caixa Preta” da aeronave:
- [Torre C.] – reporte avistando ou iniciando a arremetida, 4823!
- [Aeronave Rico] – Dois Três!
- [Torre C.] – 4823 três informe a sua posição e confirme o trem de pouso!
O comandante deixa de responder. As Caixas Prestas gravam só o silêncio.
Fora do avião, já no chão, com os destroços, o cenário era devastador: muitas pessoas mortas, estraçalhadas, outras feridas, desmaiadas, e os sobreviventes, mesmo feridos, tentando fugir para o mais distante dali com medo da explosão do que restava da aeronave, porque o cheio de querosene no ar era muito forte. Muito do sangue no local era de animais: bois e vacas, que ruminavam deitados no campo durante a chuva, foram literalmente atropeladas pelo avião no seu contato com o solo a uma velocidade estimada pelo Cenipa (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos, uma Organização Militar brasileira, vinculada ao Comando da Aeronáutica, diretamente subordinada ao Comandante da Aeronáutica), entre 250 a 300 quilômetros por hora.
O relato no parágrafo anterior é do empresário Racene de Melo Cameli, morador de Cruzeiro do Sul, conhecido como “Manu”, hoje com 53 anos de idade, um dos sobreviventes que, nesta sexta-feira 30 – exatos 17 anos depois da tragédia, estava em São Paulo se preparando para voar de volta a Rio Branco, a partir do aeroporto de Guarulhos, vindo por Manaus e de lá para Rio Branco. Ele disse que, nos primeiros anos após a tragédia, ficou com muito medo de voltar a viajar de avião. Depois, perdeu o medo e nesta manhã, por ironia, o empresário deixou de embarcar mais cedo porque perdera o voo que sairia de São Paulo (perdeu-se no caminho e foi parar no aeroporto errado, revelou).
“Eu não tenho dúvidas de que foi o Nosso Senhor Jesus Cristo que me deu uma nova chance para sobreviver”, disse, com exclusividade ao Juruá Em Tempo, em entrevista por telefone a partir de São Paulo. “Manu Cameli” revelou que, no dia da tragédia, embarcou em Cruzeiro do Sul ao lado de seu sócio João Gaspar, “o João Garapa”. Unidos por interesses comerciais, eles estavam no avião porque viria a Rio Branco comprar a representação local da empresa Amazongás. No entanto, estavam em assentos separados na aeronave: “Garapa” sentado à frente, ao lado do também comerciante João Melo, o “Joaozinho”, primo de “Manu”, que estava sentado quase no chamado rabo do avião. “João Garapa” escapa do acidente, mas seu companheiro de viagem Joãozinho Melo morre, mutilado. Manu sofreu alguns cortes e quebrou alguns dentes e está vivo, segundo ele, “porque Jesus Cristo assim decidiu”.
Manu disse que estava sentado a poucos assentos de distância do então deputado federal Ildelfonço Cordeiro, que conversava animadamente com o então vereador de Cruzeiro do Sul Luiz Maciel Costa, que também morreu na hora.“Foi tudo muito rápido. Eu só entendi o que estava acontecendo quando, já com o avião no chão, percebi que havíamos caído e tudo o que eu queria era fugir dali, daquele cenário”, disse “Manu” Cameli.
O voo que resultaria numa das maiores tragédias da aviação nacional começou de forma tranquila, na pista do aeroporto de Cruzeiro do Sul. Fazia sol e o cair da tarde naquela região de Cruzeiro do Sul onde está localizado o aeroporto trazia o cenário bucólico e típico dos entardeceres na Amazônia. Os passageiros embarcavam animados, muito rindo, se despedindo de amigos e familiares com beijos e promessas de próximos reencontros. O avião decola por volta das 16horas.
Menos de uma hora de voo, pousa, para uma escala, no aeroporto de Tarauacá. Ali há desembarque e embarque de novos passageiros. O avião decola de novo com destino a Rio Branco e, ao atingir o chamado voo de Cruzeiro, os pilotos começam a perceber que o tempo, aos poucos, vai se fechando. Começa a chover.
De acordo com o relato de Manu Cameli, os pilotos fazem pelo menos cinco tentativas de aterrisagem em Rio Branco, antes daquele diálogo registrado pelas chamadas Caixas Pretas da aeronave. “Quando o avião caiu, eu não tinha a menor ideia de onde a gente estava, se estava no Acre, em Rondônia ou no Amazonas. É porque, com a chuva, a gente via que o piloto tentou pousar, mas arremetia. Só que eles não diziam nada aos passageiros. Quando me dei conta, o avião estava no chão”, conta “Manu” Cameli.
Feriado, ensanguentado, com muitas dores no corpo e aquela visão apavorante de pessoas mortas, despedaçadas, outras vivas mas desmaiadas, só se ouvia o barulho das chama destruindo o que ainda restava do avião. “Vi, de longe, uma luz numa casa e comecei a me dirigir em direção à claridade. Era uma distância de uns 20 minutos andando, eu acho. Mas levei mais de 40 minutos, uma hora talvez, porque havia muitas cercas, e era muito escuro. Mas consegui chegar lá e pedi socorro”, contou o empresário.
Os primeiros socorros foram prestados pelos trabalhadores da fazenda, aqueles que estavam na casa cuja lamparina foi enxergada de longe pelo sobrevivente Manu Cameli. As causa do acidente foram apontadas como uma possível falha humana do piloto ou a partir do que o setor de aviação chama da “Tesoura de Vento”, quando a tempestade é capaz de empurrar a aeronave para baixo.
As vítimas fatais
Paulo Roberto Freitas Tavares (comandante do avião), Paulo Roberto Nascimento (co-piloto), Kátia Regina Figueiredo Barbosa (comissária), Luís Marciel Costa, José Waldeir Rodrigues Gabriel, Francisco Darichen Campos, Ildefonso Cordeiro, Arlete Soares de Souza, Maria de Fátima Soares de Oliveira, Walter Teixeira da Silva, Francisco Cândido da Silva, Ailton Rodrigues de Oliveira, Carina Matos de Pinho, José Edilberto Gomes de Souza, Maria Alessandra de Andrade Costa, Geane de Souza Lima, Rosimeire dos Santos Lobo, Raimundo Araújo Souza, Maria Raimunda Iraide Alves da Silva, Maria José Pessoa Miranda, João Alves de Melo, Rosângela Pimentel Cidade Figueira e Clenilda Nogueira.
Os sobreviventes
Napoleão Silva, Raceni Cameli, Maria Célia Rocha, Theodorico de Melo, Maria de Fátima Almeida, João Gaspar, Maria José Albuquerque e Luiz Wanderlei.