Previstos na Lei Maria da Penha os grupos reflexivos são instrumentos no combate à violência contra a mulher, pois colocam os autores desses crimes para refletirem sobre seus atos, com intuito de evitar que cometam novamente ações dessa natureza
“Ninguém acorda e decide cometer feminicídio. Quando o feminicídio acontece é porque diversas outras violências já ocorreram. Até que a violência chegue ao ponto de culminar na morte da mulher, na maioria dos casos, ela já enfrentou diversas vezes outros tipos de violência doméstica, em geral, cometida por marido, ex-marido, companheiro, ex-companheiro, namorado, ex-namorado ou até um pretendente que foi dispensado. É uma vida inteira de projeção de violências. Por isso, é importante interromper essa trajetória”, explicou a juíza de Direito Andréa Brito, durante a apresentação da proposta de Projeto de Lei para implantação de grupo reflexivo com homens autores de violência doméstica, em Tarauacá. A reunião aconteceu na Câmara Municipal da cidade, na quinta-feira, 30.
A proposta de Projeto de Lei foi feita pelo Judiciário e entregue a vereadora Veinha do Valmar que levará o documento para seus colegas debaterem. O documento prevê a instituição do Programa de Prevenção e Combate à Violência Doméstica Intrafamiliar, com foco principal na implantação de grupos reflexivos com pessoas que cometerem crimes dessa natureza.
Entre os principais objetivos da proposição, apresentada ao prefeito em exercício da cidade, vereadores, autoridades da área de Segurança Pública, profissionais da saúde e lideranças da comunidade, está a desconstrução das estruturas machistas enraizadas em todas as práticas e relações sociais, o rompimento da cultura de violência contra a mulher. Afinal, o grupo trabalha com a autorreflexão dos autores de violência doméstica e familiar, para que eles possam compreender suas condutas e não voltarem a reincidir ou reentrarem no sistema penal.
Assim como esclareceu a magistrada, auxiliar da presidência do Tribunal de Justiça do Acre (TJAC), “nós precisamos nos educar, educar a nossa sociedade, mas a educação vem com o conhecimento, com a informação e o diálogo aberto sobre o enfrentamento às raízes dessa violência. O feminicídio é a expressão fatal das diversas violências que podem atingir as mulheres em sociedades marcadas pela desigualdade de poder entre os gêneros masculinos e femininos e por construções históricas, culturais, econômicas, políticas e sociais discriminatórias. É importante aprendermos a nos respeitar. Passar 15, 20, 30 anos na prisão, sem refletir sobre o crime que cometeu, não reduz a violência doméstica, tampouco promove transformação cultural necessária”, explica a magistrada.
Prevenção
Diante desse cenário o enfrentamento a essa forma de violência, que matou 98 mulheres no Acre entre os anos de 2018 e 2020, segundo dados do Ministério Público acreano, é essencial e necessário que seja feito de forma preventiva, para retirar o estado da triste liderança no ranking nacional de feminicídios.
O promotor de Justiça Júlio César de Medeiros, que atua em Tarauacá e estava presente na apresentação do Projeto de Lei, ressaltou a atuação conjunta entre o Ministério Público do Estado do Acre (MPAC) e o Judiciário para combater a violência doméstica e também reconheceu o avanço na prevenção com o trabalho dos grupos reflexivos. “Com os grupos reflexivos vamos poder impactar a sociedade. O grupo reflexivo não vai esperar alguém cometer um feminicídio para incluir ele em um grupo. Assim, vamos poder atuar antes”.
Grupo Reflexivo
Os Grupos Reflexivos são desenvolvidos com pessoas encaminhadas via decisão judicial ou a partir de demanda espontânea, que são aquelas feitas por solicitação das companheiras, ou do encaminhamento pela rede de atendimento às mulheres em situação de violência, serviços de saúde, conselho tutelar, entre outros. As iniciativas brasileiras são mais frequentemente chamadas de Programas, Serviços, Núcleos, Grupos de reflexão ou Grupos reflexivos.
No âmbito internacional, as intervenções com homens autores de violência já têm uma história de pelo menos 40 anos. A primeira tentativa internacional de identificar e descrever políticas para autores de violência foi o Relatório “Intervining with Perpetrators of Intimate Partner Violence: a Global Perspective”, lançado em 2003 pela Organização Mundial da Saúde (OMS). No Brasil, esse é um eixo de abordagem relativamente recente, principalmente, no que se refere às estratégias de políticas públicas. Entre as iniciativas documentadas, as pioneiras são da Organização Não Governamental (ONG) Pró-Mulher, Família e Cidadania, de São Paulo, e do Instituto Noos, do Rio de Janeiro.
Além disso, os grupos reflexivos estão previstos no artigo 22 da Lei Maria da Penha (n.°11.340/2006), como uma das medidas que podem ser aplicadas aos autores de violência doméstica e familiar. Em Rio Branco, desde fevereiro de 2018, na Vara de Execuções Penais e Medidas Alternativas (VEPMA), de titularidade da juíza Andréa Brito, são feitos grupos reflexivos de responsabilização para pessoas que cometerem violência doméstica, chamado de “Homens em Transformação”.
Os grupos reflexivos para homens autores de violência doméstica, da VEPMA do TJAC, estão entre as iniciativas de sucesso de um mapeamento nacional feito pelo Colégio de Coordenadores da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Poder Judiciário Brasileiro (Cocevid), em parceria com a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
No estudo, divulgado em janeiro de 2021, foram listadas 312 iniciativas, desde grupos reflexivos a outros programas, que estão em funcionamento atualmente, mesmo com a pandemia. A região Norte conta com o menor número de grupos reflexivos, são apenas 25, e a Região Sul com o maior número, 125.
Enfrentar as raízes do problema
Para a assistente social da VEPMA, Mirlene Thaumaturgo, que também coordena o grupo “Homens em Transformação”, o diálogo entre as instituições é fundamental para concretizar essas ações. Durante seu pronunciamento na Câmara de Vereadores, a servidora do Judiciário questionou: “É somente pela punição que vamos transformar as pessoas? A punição é necessária, mas precisamos ir além. Eu acredito na transformação do ser humano”.
Nesse sentido o Manual de Gestão para as Alternativas Penais, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é claro: “O sistema punitivo tradicional, centrado na prisão e na constante demanda por respostas mais “duras” sempre que o sistema se apresenta incapaz de responder aos conflitos e violências, é completamente incapaz de atender às pretensões de emancipação das mulheres, da construção da igualdade e do enfrentamento à violência de gênero, pois não há transformação cultural, não há responsabilização. O sistema meramente punitivo contribui para invisibilizar ainda mais a violência de gênero, porque ele é expiatório, individualiza o problema, pressupõe que com a aplicação da sanção penal a justiça está feita, enquanto os elementos da estrutura patriarcal são reproduzidos e, em momento algum, contestados. É necessário o desenvolvimento de práticas comprometidas com mudanças estruturais no campo simbólico, capazes de promover a desnaturalização de uma cultura machista e sexista. Essas práticas não devem ser entendidas em sentido estrito como um serviço ‘para homens’, mas como ação destinada a interromper as violências de gênero e intrafamiliar”.
Atuação interinstitucional e internacional
Seguindo essa linha voltada, primeiro ao atendimento à vítima e depois a implementação de práticas preventivas da violência, o Tribunal de Justiça acreano tem atuado, por meio da desembargadora-presidente, Waldirene Cordeiro, que comprometeu a gestão com a promoção da igualdade de gênero, em conformidade com as orientações do CNJ.
Entre as metas anuais do CNJ para o ano de 2021, foi instituída a Meta 9, recomendando que os tribunais integrem a Agenda 2030, um compromisso internacional assinado por 193 países com a Organização das Nações Unidas (ONU), para promoverem políticas de sustentabilidade e desenvolvimento social. O plano de ação feito pela ONU tem 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e a atual gestão do TJAC elegeu o objetivo de número 5, “alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”, para intensificar as ações dentro do Judiciário acreano.
A escolha desse propósito casa com o trabalho feito no âmbito da Coordenadoria Estadual das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Comsiv) do TJAC, com a liderança da desembargadora Eva Evangelista e coordenadora da Meta 9. Assim, o esforço em interiorizar, levar para as cidades acreanas, as boas práticas executadas no pela Justiça na proteção às mulheres é redobrado pelas integrantes e integrantes da Justiça estadual.
Para a desembargadora Eva Evangelista “Os grupos reflexivos, introduzidos pela Lei Maria da Penha e também por Lei ordinária própria (n.°13.984/2020), são instrumentos valiosos na prevenção e combate à violência doméstica, e familiar contra a mulher por sensibilizar os autores desses tipos de crime sobre suas condutas e pela reflexão os instigam à mudança de comportamento. Representam instrumento valioso de proteção de mulheres, crianças, adolescentes e de suas famílias contribuindo para efetivar o compromisso do Tribunal de Justiça em relação à Meta 9, acolhendo o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável da ONU, ODS 5, de promoção da igualdade de gênero”.
Além disso, a magistrada também ressaltou as iniciativas realizadas pelo Judiciário acreano na prevenção a violência doméstica e familiar, concretizada com o apoio da presidência do TJAC. “Nesse sentido, entre outras iniciativas, também destaco a interiorização das ações da Coordenadoria Estadual das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar, cooperando para instituir as redes locais de proteção, e levando as proposições para criação dos grupos reflexivos. Por tudo isso, o reconhecimento à desembargadora Waldirene Cordeiro, presidente do Tribunal de Justiça, pelo apoio inconteste, às Prefeituras e Câmaras Municipais pela conscientização, recebem as equipes do TJ, compreendem e somam esforços nessa causa”, disse a desembargadora Eva.
Somadas a esses esforços têm a política institucional do Judiciário para aplicação de alternativas penais, com normativa aprovada pelo CNJ em 2018. A atuação deve se pautar em enfoque restaurativo, em substituição à privação de liberdade. Isso dialoga com os objetivos do Programa Justiça Presente, desenvolvido por meio de parceria entre o CNJ, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) para enfrentar a crise penal.
Assim por meio de parcerias do Judiciário com Executivo visa-se a estruturação de serviços de acompanhamento das alternativas penais e também garantir o acesso dos cumpridores das medidas a serviços e políticas públicas de proteção social e atenção médica e psicossocial. Com isso, os tribunais devem promover a criação de varas especializadas em execuções de penas e medidas alternativas, capacitação de seu corpo funcional e o estímulo a criação dos grupos reflexivos para responsabilização de agressores.
Para a coordenadora Municipal de Políticas Públicas para as Mulheres no município de Tarauacá, Socorro Araújo, é essencial o diálogo e a adoção de medidas práticas para atender as necessidades das pessoas. “Esse agir, instituir o grupo reflexivo na cidade significa salvar vidas”, comentou Araújo.