Em Irpin, a batalha já dura uma semana, a maioria dos civis já fugiram da cidade e vários corpos estão espalhados pelas ruas
Parecia um desses dias de verão em que os trovões tomam conta de tudo antes de a chuva chegar. O som abafado dos disparos de artilharia — ora mais perto, ora mais distantes — não cessou por quase nenhum momento no fim de semana. O barulho contrastava com as ruas absolutamente vazias desta cidade dormitório de pouco mais de 60 mil habitantes na periferia de Kiev. Irpin tem sido o palco das batalhas mais violentas entre russos e ucranianos no entorno da capital do país. Se Irpin cair, os russos estarão oficialmente nas portas de Kiev.
Enquanto as artilharias das forças russas e ucranianas atacavam-se mutuamente, ao longo de todo o domingo soldados combatiam nas franjas da cidade. As tropas russas parecem ter desistido de marchar sobre Irpin pela entrada principal, com sua enorme coluna de blindados, e iniciaram ataques pelos flancos direito e esquerdo. Primeiro com ataques de morteiro, depois com pequenos pelotões que tentavam se infiltrar na cidade pela densa floresta que a circunda.
Soldados russos foram avistados por jornalistas dentro de Irpin na tarde de domingo.
Os soldados ucranianos estão combatendo a infantaria russa com o apoio de dezenas de militares estrangeiros. No final da tarde de sábado, a reportagem de O GLOBO presenciou um grupo de mais de duas dezenas de combatentes internacionais saindo de Irpin em direção a Kiev. Todos estavam vestidos com uniformes do Exército ucraniano, incluindo a bandeira do país no ombro direito. Vários deles, porém, traziam junto ao uniforme as bandeiras de seus países de origem.
Veterano do Afeganistão
No grupo, a maior parte dos soldados identificados como estrangeiros era de americanos. Havia também um grupo de britânicos e ao menos um militar com a bandeira da França atada a seu uniforme. Chris, um dos soldados com a bandeira americana, disse estar combatendo há uma semana em Irpin. Veio para a Ucrânia com um grupo de amigos dos tempos em que serviu no Afeganistão.
“Somos todos Rangers, estamos em um grupo de dez amigos, nos conhecemos quando combatemos no Afeganistão. Alguns também são veteranos do Iraque” disse.
No domingo, um grupo de soldados com o símbolo da Legião Estrangeira francesa atado aos uniformes foi visto pela reportagem entrando em Irpin para combater.
Já não há praticamente ninguém em Irpin além de soldados, grupos paramilitares e alguns civis que fazem o transporte de feridos e de mortos até a entrada de Kiev. No hospital da cidade, quase todo destruído, sobrou apenas um médico, que fica de plantão para estabilizar feridos que serão enviados para a capital.
“Não temos mais como manter o hospital aberto, não há eletricidade, não há água, não há aquecimento” dizia Anton, o último profissional de saúde que restava ali.
No subsolo do hospital, civis e soldados utilizam lanternas para recolher alimentos que estavam na despensa e medicamentos que ficaram para trás. No prédio anexo, já bombardeado, sem janelas ou portas, dois corpos foram colocados sob as escadas para serem preservados pelo frio até que sejam retirados dali.
Indiferentes aos corpos
Com tantos bombardeios, com tantos feridos, com tanta violência, a visão dos corpos espalhados pela cidade já não parece incomodar ninguém. Sobre os trilhos que dividem Irpin de Bucha, outra cidade dormitório na periferia de Kiev e já sob o controle das forças de Moscou, os corpos de dois soldados russos seguem ali há dias. Um pouco mais à frente, diante de um shopping center agora em ruínas, um outro corpo se mistura aos escombros. Seus pés se foram, e parte de suas pernas estão destroçadas. Alguns soldados dizem que tentam afastar os cachorros que foram abandonados pela população em fuga, mas nem sempre conseguem.
Na parte oeste da cidade, o Parque Central se transformou em uma espécie de cemitério sem covas. Pelo menos três corpos seguem ao relento, de três homens. Dois ao lado de seus carros. Um com um tiro na cabeça, como se tivesse sido executado. Na esquina, um senhor de idade parece estar bêbado, dormindo um sono pesado. Mas está morto. Ao chegar perto dele é possível ver o sangue ressecado que saiu de sua boca, seu nariz, seus ouvidos, provavelmente fruto de uma hemorragia após ser baleado.
Insistindo em ficar
Mesmo diante de um cenário de absoluta desolação e com a perspectiva de uma iminente batalha pelas ruas da cidade, alguns moradores insistem em não deixar suas casas. Ontem, enquanto as bombas caiam ao redor de Irpin, uma senhora cuidava do jardim ressecado pelo frio na entrada de sua casa. Tirava o mato que, sabe-se lá como, insiste em crescer nestes dias frios do fim do inverno. Dois homens a acompanhavam. Perguntei o que faziam ali. E um deles, em um inglês bastante básico, me disse:
“Aqui é minha casa, vou ficar.”
A poucos metros da última linha de defesa ucraniana, a menos de um quilômetro das posições russas, famílias se uniam em um abrigo antiaéreo utilizado pelos soldados que estão nas posições avançadas. Dividiam as camas com os cães e os gatos que trouxeram de casa. Maxim, um senhor, contava aos jornalistas que estava decidido a ficar. Os soldados não quiseram lhe dar uma arma.
“Eu vou ficar, não sou covarde. Ao menos um russo eu levo comigo antes de morrer.”