Segundo Alexander Downes, da Universidade George Washington, ajuda militar americana pode ser decisiva para defesa da Ucrânia
Ao concederem na semana passada uma multibilionária ajuda militar à Ucrânia, os Estados Unidos tinham em mente, além de motivos morais, promover um de seus objetivos estratégicos: fazer a Rússia, seu adversário, sofrer. Se a ajuda pode ser decisiva no campo de batalha, inclusive permitindo que a Ucrânia reconquiste posições há muito perdidas no Leste, por outro lado, ela torna o fim da guerra mais distante. Após tamanho investimento, Vladimir Putin não aceitará encerrar a guerra sem nada obter. Em vistas disso, ele pode redobrar a aposta militar, inclusive atacando alvos da Otan. Para o fim do conflito, é necessário uma diminuição das tensões e uma mudança de retórica por parte do governo americano. A análise é de Alexander Downes, professor de ciência política e Relações Exteriores na Universidade George Washington, onde também é codiretor do Instituto para a Segurança e Estudos do Conflito, em conversa com O GLOBO.
Como a ajuda militar à Ucrânia que os EUA anunciaram na semana passada irá mudar o curso da guerra?
Há um incremento da quantidade e do tipo de armamento fornecido pelos EUA e a Otan. A ajuda, que no ínicio era de munição para armas pequenas e coletes à prova de bala, passou para coisas de fato eficazes, como mísseis antitanque e antiaéreos. Agora, já são tanques, e a Eslováquia forneceu um sistema antiaéreo S-300. Isso aumentará a capacidade ucraniana de resistir aos russos e de lhes infligir mais danos.
Em termos políticos e estratégicos, o que muda?
Há uma mudança no discurso. O objetivo inicial americano era ajudar os ucranianos, e o dos russos, retirar Zelensky. Essa meta russa fracassou, e os americanos aumentaram sua aposta. O novo objetivo é ajudar a Ucrânia a expulsar os russos de todo o seu território, e, como disse o secretário de Defesa, enfraquecer a Rússia para que não possa fazer isso novamente. Creio que, em termos de objetivo final, o governo entende que seria ótimo se Putin saísse do poder. Ou seja, há uma meta de mudança de regime. Embora os EUA não estejam fazendo nada diretamente para tentar alcançá-la, tentam infligir cada vez mais danos à Rússia, militar e economicamente, de modo que alguém na Rússia cuide desse problema, por meio de uma revolução ou golpe.
O senhor considera que os ucranianos possam tentar reconquistar a Crimeia e territórios no Leste que perderam ainda em 2014?
À medida que os EUA e a Otan intensificam seu envolvimento militar e a retórica sobre os seus objetivos, isso endurece a posição de negociação dos ucranianos. Quando os russos estavam a poucos quilômetros de Kiev, Zelensky estava muito mais disposto a fazer um acordo e dizer que nunca ingressaria na Otan. Mas, como o Ocidente se envolveu cada vez mais e agora diz querer tirar os russos, Zelensky entende que pode ir mais longe, e acha que pode se sair bem na guerra. Já não o ouvimos mais falar sobre não aderir à Otan, e ele diz que cada centímetro do território ucraniano é sagrado, que não cederá nada à Rússia. Já Putin não está disposto a desistir de manter a Crimeia, talvez assumir o controle de todo o Donbass, e de deixar a Ucrânia fora da Otan. Estamos em um impasse.
Como esse envolvimento cada vez maior da Otan aumenta o risco de acirramento?
Há um risco em aumentar os suprimentos para a Ucrânia e afirmar que há um objetivo de enfraquecer a Rússia. Putin precisa de alguma conquista na guerra, depois de suportar um grande custo econômico e muitas baixas. Uma possibilidade é que ele tome uma rota irracional e, em 9 de maio, o Dia da Vitória sobre os nazistas, declare vitória, reivindique os territórios que conquistou e negocie a partir daí. Mas, à medida que as baixas russas se acumulam e suas forças são empurradas para trás, isso se torna inviável. Ele então pode dobrar a aposta militar.
Como se daria essa intensificação militar?
Há três coisas que podem acontecer. A primeira é uma campanha muito mais agressiva para interditar o fluxo de suprimentos ocidentais para o Exército ucraniano, que chegam em caminhões ou trens. Os russos não foram de fato agressivos na tentativa de parar com esses fluxos, e podem atacar mais ferrovias e estradas, inicialmente com armas convencionais. Isso poderia se estender aos países da Otan vizinhos à Ucrânia, onde as remessas são organizadas. A outra coisa que poderia fazer é usar armas químicas. E a terceira coisa, claro, é a escalada nuclear.
Qual seria este cenário nuclear?
Seria algum tipo de ataque nuclear limitado, algo que os russos têm citado muito. É possível imaginar um ataque de demonstração com uma arma nuclear tática em algum lugar que não seja o campo de batalha, para deixar claro que estão falando sério. O ataque poderia ser, por exemplo, no Oeste da Ucrânia, contra as linhas de abastecimento. Mas, se ficarem desesperados o suficiente, é possível imaginar um pequeno ataque nuclear, digamos, dentro de um país da Otan, contra rotas de abastecimento ou algo assim.
Esses três passos devem seguir uma progressão?
Não sei se será uma progressão simples. A opção nuclear seria um último recurso, se a situação piorar muito para os russos. Se piorar um pouco, ficariam mais agressivos contra as linhas de abastecimento.
Qual seria a reação da Otan a um ataque convencional russo a linhas de suprimento em um país da Otan, como a Polônia?
Depende dos danos. Se os russos usarem aeronaves no ataque, possivelmente seriam abatidas, então o mais provável é o uso de um míssil de cruzeiro ou um míssil balístico. Estes também podem ser interceptados por defesas antimísseis, como as baterias Patriot, na Polônia. Mas, claro, também é possível que o ataque não seja interceptado e danos substanciais sejam infligidos. Nesse caso, é provável que a Otan responda com um ataque convencional em alguns, mas não todos, lançadores de mísseis russos — ou então a bases aéreas, se o ataque foi lançado de aeronaves. Isso seria acompanhado por uma advertência contra a realização de novos ataques. Em outras palavras, seria uma resposta limitada e cuidadosamente direcionada. Mas se o ataque russo for interceptado e não causar danos, é improvável que a Otan ataque mísseis russos. Em vez disso, aumentaria as suas defesas aéreas em países que fazem fronteira com a Rússia e a Ucrânia e aumentaria ainda mais os suprimentos de equipamentos militares e inteligência para as forças ucranianas. Se a Rússia atacasse novamente, a aliança então responderia com o ataque a alvos russos.
A Rússia tem feito muitos alertas nucleares. O quão sérias são essas ameaças?
Diria que não muito neste momento. Desde o início da guerra Putin tem dito para a Otan e os EUA não se envolverem, ou então armas nucleares poderiam ser usadas. A ameaça não funcionou, e a Otan abastece os ucranianos em grande escala. Creio que, exceto se a situação militar russa se deteriorar significativamente, o uso de armas nucleares não é uma alta probabilidade. Se os russos começarem a ser expulsos, os ucranianos avançarem, tomarem o Donbass, aí sim o risco seria muito maior.
O fraco desempenho das forças russas o surpreendeu?
Surpreendeu a todos. Analistas tendem a ver o tamanho das forças e os equipamentos, e a Rússia tem um equipamento bastante avançado. Gastam muito dinheiro para renovar suas forças. O que é muito mais difícil de observar é o treinamento, o moral das tropas, a qualidade e a capacidade de logística para abastecer forças em movimento. Descobriu-se que essas coisas eram incrivelmente fracas dentro do Exército russo. Há no Exército russo muitos imigrantes da Ásia Central que foram para a Rússia para tentar obter a cidadania e encontraram no Exército uma maneira de obter renda e enviar remessas de volta. Também há muitos recrutas com treinamento muito ruim. Ambos os grupos não são altamente qualificados e não têm moral elevado. Muitos não sabiam que estavam sendo enviados para a Ucrânia para lutar. Não importa se você tem equipamento avançado, se não souber operá-lo, você ainda será destruído a céu aberto. Além disso, a rede de logística russa se tornou terrível. Você não pode usar seus veículos se não tiver combustível para abastecê-los, ou usar sua defesa blindada se estiver sem munição.
Um dos objetivos declarados da Rússia durante esta guerra foi a desmilitarização da Ucrânia. Com a ajuda americana, a Ucrânia irá dispor de um dos maiores orçamentos em defesa do mundo. Como a Rússia reagirá?
Não acho que a desmilitarização estará na mesa de negociações. Talvez alguma limitação de armas mais ofensivas, que consistem em algumas aeronaves de ataque e tanques. Mas não há como a Ucrânia aceitar um acordo que a deixe vulnerável a um novo ataque russo, porque nada garante que os russos não voltarão e tentarão novamente uma invasão. E então a Ucrânia não vai aceitar se livrar de todas as suas armas e confiar na boa vontade e palavra de Putin.
A Rússia deve tentar manter o controle de territórios ocupados, como Kherson e Mariupol. Quais são as chances de sucesso deste controle, após estes lugares sofrerem tanto?
Não acho que os russos tenham escrúpulos que os impeçam de usar níveis extremos de opressão contra civis ucranianos. Se conseguirem manter esses lugares, vão governar com mão de ferro, o que vai suprimir um pouco da resistência. É muito mais difícil resistir na cidade do que no campo, onde há muito espaço para se esconder e lançar ataques.
Em sua avaliação, o que os Estados Unidos deveriam fazer?
Para os EUA, faz muito sentido ajudar os ucranianos, não apenas por ser a coisa moral a se fazer, particularmente após os conduzirmos rumo à adesão à Otan em desafio à Rússia, que há anos dizia que esta era uma linha vermelha. Faz sentido também em termos de sangrar seu adversário. Os russos vão ficar atolados na Ucrânia, e faz sentido ajudar os ucranianos, como ajudamos os mujahideen no Afeganistão na década de 1980. Mas, se você quer acabar com a guerra, não pode almejar a saída de Vladimir Putin. Para encerrar o conflito, será necessário lidar com ele, e, quanto mais ajudarmos a Ucrânia, menos os ucranianos estarão dispostos a ceder em qualquer acordo. Este acordo também se torna mais improvável quando você diz que Putin é um criminoso de guerra e que está ocorrendo genocídio na Ucrânia, como fez Biden. É difícil negociar com alguém que você rotulou de criminoso de guerra ou genocida: como você pode admitir que essa pessoa vá ficar no poder? Mas os EUA precisam perceber que Putin não vai a lugar nenhum. Isso tudo tem o efeito de prolongar a guerra, porque torna um acordo menos provável. Então, de alguma forma, precisamos traçar uma linha e deixar claro que estamos interessados em um acordo negociado, não em uma vitória absoluta. Isso pode significar que os ucranianos sejam um pouco mais flexíveis e aceitem algo menos do que o seu ideal, o que é difícil, depois de tanto sofrimento em lugares como Mariupol e Bucha. Mas a guerra só vai parar com algum tipo de acordo negociado, e isso envolverá Vladimir Putin.