“Agradeço com meu coração e minha razão estar sendo aceita nesta casa com este elenco protagonista”, disse a atriz
Quem acompanhou a preparação de Fernanda Montenegro para a sua posse na cadeira 17 da Academia Brasileira de Letras, oficializada em cerimônia no Petit Trianon na noite de ontem, espantou-se com a dedicação e disciplina da atriz. Foi como se, aos 92 anos, ela se preparasse para uma peça. O papel de acadêmica já pode ser visto como um de seus trabalhos mais intensos.
— Sou uma incansável autodidata. Sou atriz. Venho dessa mítica arte arcaica e eterna. Atores, cenógrafos, dramaturgos. Somos uma raça indestrutível”, disse. “Somos amorais. Para muitos, ainda somos marginais. Nenhum pai e mãe aceitam um filho, muito menos uma filha, optarem pelo palco. Amadoramente, sim, mas não como profissão — disse Fernanda em seu discurso de posse na noite desta sexta-feira (25), em um texto que misturou sua própria trajetória no teatro com a das artes cênicas no Brasil.
A atriz relembrou um conceito de Shakespeare — a vida é um palco — para definir sua relação com o mundo:
— Todos nós seres humanos somos atores neste palco. Agradeço com meu coração e minha razão estar sendo aceita nesta casa com este elenco protagonista — afirmou a atriz, que aproveitou para falar sobre a política cultural do governo Bolsonaro. — Resistimos. Somos eternos.
Nas cerimônias de posse, todo novo acadêmico é “recebido” por um veterano. Nesta sexta, a função caberia à sua amiga Nélida Piñon, que não pode comparecer. Coube à própria Fernanda ler o discurso de Nélida, que definiu a entrada de Fernanda na ABL como “um grande dia para a pátria”.
“Âncorada na cultura cênica e endereçado na cultura pátria, pisar as tábuas do tablado era render-se a uma cultura colossal (...) Não houve falha de Fernanda Montenegro no amor à arte de interpretar . Nem ao amor à condição humana. (...) Com tudo afirmo que Fernanda foi tecida por uma fervorosa adesão ao Brasil”, escreveu Nélida, no texto lido por Fernanda.
Ensaio da posse
Para chegar até a posse de ontem, a Grande Dama cumpriu com seriedade todas as etapas. Mesmo sem rivais para a cadeira (ninguém ousou concorrer contra ela), não deixou de fazer campanha e fez questão de passar por uma eleição, ocorrida em novembro. Recebeu 32 dos 34 votos (dois foram em branco).
Na última quinta-feira, dedicou-se ao ensaio da posse, e sua disciplina ao repassar o texto do discurso impressionou as testemunhas. Ontem à noite, chegou muito concentrada ao Petit Trianon uma hora e meia antes da cerimônia. Desviou da tietagem e foi direto para a sala da meditação, onde os eleitos ficam confinados se preparando emocionalmente para o seu momento. Meia-hora depois, reapareceu em um Petit Trianon lotada para vê-la tomar posse.
— É como a preparação de um papa — brinca sua assessora Carmen Verônica, que há décadas acompanha de perto todos os passos da atriz. — Fernanda está com 92 anos e queria muito que esse momento da posse fosse perfeito, sem nenhum problema.
E assim foi. Em julho, a atriz deverá reencontrar o Teatro Teatro R. Magalhães Jr., no prédio da ABL, pela primeira vez como acadêmica, para uma leitura de Nelson Rodrigues. Fernanda conhece bem o local, onde se apresentou diversas vezes. Em uma delas, em 2013, interpretou uma adaptação do romance “Capitu, Memórias Póstumas”, de seu agora colega de fardão, Domício Proença Filho.
— A leitura foi um momento mágico, uma das maiores alegrias da minha vida — lembra Proença. — Ficamos amigos depois desse projeto. Após ser eleita, ela adotou um recolhimento necessário, que mostra como ela levou a sério a preparação. Nessa última entrevista que deu ao GLOBO (publicada no domingo passado), ela disse algo que comoveu os acadêmicos: “Vim aqui para aprender”.
Os membros da ABL seguem encantados com a nova integrante da família. Antes da posse, Ignácio Loyola Brandão disse que, se pudesse, se ajoelharia aos pés da atriz:
— E uma honra e um privilégio ser seu contemporâneo e sentar-se ao seu lado nesta Academia — disse ele.
O autor de “Não verás país nenhum” justificou:
— A Academia é de personalidades da cultura e da arte e da literatura. Existe alguém maior que Fernanda no campo dela? O que fez, em teatro e cinema, novelas, suas posições... ímpar sempre. Admirável.
O presidente da ABL, Merval Pereira, declarou Fernanda empossada na Academia após Domício Proença Filho diplomá-la.
— Foi uma noite histórica — disse Merval. — A Fernanda tem essa vontade de representar a cultura brasileira.