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Brasil/Mundo

Bolsonaro é um caso clínico, o que não o livra de responder por seus atos

O “evento” — já que entrevista não foi — protagonizado por Jair Bolsonaro nesta sexta, às portas do Palácio da Alvorada, não é próprio de uma pessoa no pleno gozo das chamadas “faculdades mentais”.

Sempre me pareceu haver entre Bolsonaro e a realidade um certo déficit cognitivo. Ele tem domínio, claro!, do contexto político em que está inserido; evidenciou que sabe obter vantagens pessoais da vida pública — o patrimônio declarado da família se aproxima de R$ 15 milhões; manteve um mandato de deputado por 28 anos; três filhos seus são políticos eleitos; já lançou um quarto na vida pública e, maior de todas as conquistas, é presidente da República. E aqui está uma questão.

Damos de barato que um idiota clínico não chegaria tão longe. A minha avaliação: depende! Se o partido que chegou a representar a esperança de milhões de pessoas cai em desgraça; se uma força-tarefa do Ministério Público e da Polícia Federal destrói o espaço público sob o pretexto de caçar corruptos; se a própria imprensa ajuda a demonizar a política; se um maluco tenta matar um idiota clínico, franqueando-lhe o papel de herói da resistência, então um idiota clínico pode, sim, assumir o lugar do protagonista. Chega ao topo. E continua a ser quem é.

É evidente que Bolsonaro tem noção da gravidade das acusações que engolfaram Flávio Bolsonaro — e, na verdade, a sua família. Tudo índica que o filho era o operador de um método do clã. Ainda que tivesse uma moralidade deformada para a vida pública, alguém que estivesse os neurônios ajustados, mesmo que com a disposição de enganar o público, teria uma reação muito distinta daquilo que se viu nesta sexta.

Sabemos que Bolsonaro é reacionário, agressivo, homofóbico, misógino… E essas características se manifestaram na sua conversa com repórteres, com as manifestações de praxe de seus seguidores, que representam o coro da boçalidade da bolha de opinião na qual é herói. É parte do jogo. É a expressão daquilo que ele é e representa. A minha questão aqui é outra. Diz respeito à “pertinência”.

Os exemplos a que ele recorreu para se explicar — ou para fugir das questões — não guardam conexão com a realidade. Mesmo o ânimo para ofender tem de guardar relação transitiva com o assunto em pauta. Não é o caso. Entendam: as agressões do presidente não fazem sentido. Ele não domina nem a arte do insulto, que também é um exercício de inteligência — ainda que se possa fazer mau uso desse atributo. Ou por outra: os ataques de Bolsonaro são burros; não funcionam nem como resposta diversionista. E, se notarem, é a cara do seu governo.

Exceção feita à gestão da política econômica, na qual não apita, e aos esforços empreendidos por Tarcísio Gomes de Freitas, que também passam longe da diretriz presidencial, o governo é tão alucinado como o seu condutor. Não sou especialista, mas é, sim, um caso de idiotia clínica.

Vamos ver. Indagado se tem o comprovante do empréstimo de R$ 40 mil que diz ter feito a Queiroz, responde: “Oh rapaz, pergunta para a tua mãe o comprovante que ela deu para o teu pai, tá certo?” Sim! É estúpido, grosseiro, misógino, asqueroso, repulsivo. Mas indago: que conexão guarda a sua ofensa com a indagação feita? É, em suma, a resposta de um doido.

E ele prosseguiu:

“Você tem a nota fiscal desse relógio no teu braço? Não tem. Você tem nota fiscal do teu sapato? Você tem do teu carro, o documento. Tudo para o outro lado tem que ter nota fiscal e comprovante. Eu conheço o Queiroz desde 1985, nunca tive problema. Pescava comigo, andava comigo no Rio de Janeiro. Tinha que ter segurança comigo, andava com meu filho. Se ele fez besteira, responda pelos atos dele”.

Poderia dizer aqui que consumidores não são obrigados a andar com a nota fiscal daquilo que compram. Mas isso corresponderia a dar uma resposta racional, técnica, organizada, a aquém está falando qualquer coisa. O que o tem a ver Queiroz com a sua pergunta retórica sobre nota fiscal? Nada faz sentido. Mas que se note ali um lapso na linguagem: trata a si e aos seus como “o outro lado”. Outro lado de quê? Resposta: do mundo em que transitam as demais pessoas. Bolsonaro se sente em guerra contra o mundo.

Ao responder uma pergunta sobre a investigação que alcança Flávio, disparou:

“Você tem uma cara de homossexual terrível, nem por isso eu te acuso de ser homossexual. Se bem que não é crime ser homossexual”.

De novo: à parte o ânimo para ofender — e ele considera que associar alguém à homossexualidade é uma agressão “terrível” —, o que há de comum ou contrastante — de transitivo! — entre a sexualidade do repórter e a pergunta que lhe foi dirigida para que ele opte por essa tentativa de paralelismo?  Há tanto nexo entre uma coisa e outra como dizer: “Você tem cara de que gosta de comer pão com leite condensado; nem por isso eu te acuso de comer pão com leite condensado. Se bem que não é crime comer pão com leite condensado”.

Mas tomar uma parte ou a totalidade do salário de funcionários da Assembleia Legislativa do Rio lotados em gabinetes de deputados é, sim, crime!

O salto mais formidável no valo demencial se deu quando indagado se iria transferir a embaixada do Brasil em Israel de Tel Aviv para Jerusalém:

“Você pretende se casar comigo um dia? Não seja preconceituoso. Você não gosta de loiro de olhos azuis? Isso é homofobia, vão te processar por homofobia”.

Há aí uma dupla desconexão entre texto e realidade: uma externa e outra interna. A externa é evidente: em que o suposto exemplo responde à demanda, ainda que por metáfora? E há a interna: na fala do presidente, a homofobia e caracterizaria por um homem não querer se casar com um louro de olhos azuis. Sem contar a nada discreta sugestão de que ele considera que tais atributos o colocam acima de morenos de olhos escuros.

E, vejam lá, sobraram ataques para o governador Wilson Witzel e o juiz Flavio Itabaiana de Oliveira Nicolau, embora ele não tenha um só elemento objetivo a sustentar suas acusações. Imaginem só. Um presidente da República disparou a seguinte frase: “O Rio é o Estado mais corrupto do Brasil”.

O NEYMAR

Ademais, Bolsonaro não inova nem quando tem de emular com os piores momentos de Lula, ainda a sua Nêmesis imaginária.

Indagado sobre a razão de Flávio Bolsonaro ficar com a maior parte do lucro da loja de chocolates, pouco sobrando o sócio, o presidente saiu-se com esta:

“Acusaram ele também de estar ganhando mais na casa de chocolate. Quem leva mais cliente —e ele leva um montão de gente importante pra lá— ganha mais. É a mesma coisa de chegar para o Neymar [e perguntar]: ‘Por que ele está ganhando mais do que os outros jogadores?’ Porque ele é mais importante. Não é comunismo.”

Em 2006, ao responder sobre o sucesso da vida empresarial de um de seus filhos, Lula o associou a Ronaldinho.

ENCERRO

Sim, estou convencido de que Bolsonaro tem um problema que é clínico. Suas respostas, a meu juízo, o evidenciam com clareza.

Ocupa, no entanto, um lugar de quem está obrigado a responder por seus atos.

O único remédio que o institucionalidade tem de ministrar a ele é o triunfo da lei.

O Brasil não pode se transformar em seu hospício privado.