Por maioria de votos, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) pôs fim à manobra inconstitucional que tentava abrir a possibilidade de reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado. Seis ministros entenderam que o texto do art. 57, § 4.º da Constituição – “vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente” – não permite interpretação autorizando a reeleição da presidência das Casas Legislativas.
Foi uma vitória importante da Constituição. Em primeiro lugar, mostra que, apesar dos pesares, o Supremo respeita o texto constitucional, sem tolerar interpretações que na prática negam o conteúdo e o sentido da norma escrita. Além de aportar segurança jurídica, a defesa da Constituição relembra a existência de limites claros a quem deseja que o Direito se curve a suas pretensões de poder. Num Estado Democrático de Direito, é o exercício do poder que deve se submeter, sem exceções, à Constituição, e não o contrário.
Além disso, ao mostrar que as regras do jogo são claras, sem margem para novas interpretações, a decisão do Supremo é uma contribuição para o bom andamento dos trabalhos do Legislativo. Por exemplo, não há mais motivo para que a pauta do Senado fique condicionada às pretensões do presidente do Senado, Davi Alcolumbre, de se manter no cargo por mais dois anos. Com a reafirmação da validade do art. 57, § 4.º da Constituição, o STF permite que o Congresso esteja voltado à análise e votação dos projetos e reformas de que o País precisa.
Especialmente neste momento, com a pandemia de covid-19 a exigir atuação coordenada e diligente do poder público, além dos muitos desafios sociais e econômicos a serem enfrentados, a conclusão do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) 6.524 representa uma excelente notícia para o País. Mas é preciso reconhecer que a margem apertada do resultado, com cinco ministros defendendo relevar o texto constitucional, traz preocupações e suscita reflexão.
Cinco ministros do STF entenderam que faz parte de sua competência jurisdicional suspender a aplicação de parte da Constituição, reescrevendo-a, quando, segundo seu juízo, determinada conjuntura política assim o recomendar. Sob essa estranha lógica, o critério decisório do Judiciário não estaria determinado pelo Direito, mas poderia ser revisto, atualizado ou mesmo inventado por um magistrado. Trata-se de tese perigosa. No regime democrático, quem faz as leis, ou quem altera a Constituição, é quem recebeu, pelo voto popular, tal atribuição.
Também causou perplexidade o fato de que a Procuradoria-Geral da República (PGR) e a Advocacia-Geral da União (AGU) deram, em alguma medida, aval à possibilidade de reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado. Em suas manifestações na Adin 6.524, PGR e AGU alegaram que a decisão sobre o tema cabia ao Congresso, e não ao Judiciário, por força do princípio da separação dos Poderes. Vale lembrar que a missão da PGR, órgão máximo do Ministério Público, é defender a ordem jurídica e o regime democrático, e não interesses políticos que afrontam precisamente essa ordem jurídica.
A AGU é a instituição que representa a União judicial e extrajudicialmente. Sua manifestação no caso é, assim, registro da participação do Palácio do Planalto na manobra para descumprir a Constituição, fazendo-se submisso às mais deletérias pressões políticas. Para apoiar as pretensões de Davi Alcolumbre, o Executivo federal não teve receio de ignorar o Direito.
Conjunturas políticas não podem prevalecer sobre a Constituição. “É inaceitável que as Casas Legislativas disponham conforme as conveniências reinantes, cada qual adotando um critério, ao bel-prazer, à luz de interesses momentâneos”, disse o ministro Marco Aurélio, no voto que abriu divergência e acabou por sagrar-se vencedor.
Ao contrário do que insinuam as teses autoritárias, crises ou tempos atribulados não são desculpa para desvios à margem da Constituição. Como lembrou o Supremo, o único caminho é o cumprimento do Direito, sem exceções.