Os acontecimentos golpistas de 8 de janeiro e a firmeza com que instituições do estado, organizações da sociedade civil e os atores que dirigem umas e outras reagiram aos ataques constituíram, juntos (os fatos golpistas e as posições democráticas assumidas diante deles), um só processo de afirmação e fortalecimento da democracia e dos poderes do estado de direito. Se as eleições de outubro de 2022 deram a senha para a reversão do impulso autoritário que encontrara guarida nas urnas de 2018 e que legitimara a ocupação do governo por seus agentes a partir do ano seguinte, foi o processo transcorrido em janeiro de 2023 que ensejou o uso prático e eficaz dessa senha. Consumou-se a reversão.
Com a dupla derrota da extrema-direita, em outubro e janeiro, além de se mudar o governo, os executores dos atos golpistas foram logo presos, estão sendo agora processados, com agilidade e rigor, pelo poder constitucionalmente autorizado a isso. O Judiciário tem agido em cooperação com órgãos da segurança pública, que também se dedicam, diuturnamente, a identificar os autores intelectuais e financiadores dos atos para também processá-los, conforme a lei. As corporações militares, tidas e havidas, na quadra mais recente da vida nacional (e nem sempre de modo justo) como potenciais fontes de desestabilização democrática, estão pacificadas e submetidas ao poder civil, sem prejuízo, como se vê, de indiciamento pessoal de militares. As instituições republicanas retomam sua normalidade e a rigor não se pode mais falar de conjuntura de risco à democracia. Ficaram abertos, a princípio, caminhos para que a política democrática cuide do que mais interessa, as avarias no seu edifício e na sua dinâmica institucional, para que tenham passagem as pautas econômicas, sociais e ambientais, em nome das quais se negou, à extrema-direita, a continuidade de sua experiência no governo.
Em contraponto à positividade desses fatos, o clima político do país, que se supunha desanuviado por um processo democrático benigno, voltou a ficar muito tensionado por uma pauta judicial e policial. Caminhamos a passos largos para um ambiente semelhante aos dos tempos da Operação Lava-jato. Os atores de ontem cumprem papeis invertidos, sob a perplexidade de quem quer aposentar aquele script. A pergunta a ser respondida é por que a sensação de excepcionalidade sobrevive a outubro e janeiro.
Faz parte da prorrogação de guerra ferida com inversão de papeis um discurso insólito do senador Hamilton Mourão, em “defesa da democracia” contra “ataques” do que ele e aparteantes simpáticos chamam de instrumentalização governamental da Justiça para “vingança”, ou mesmo de “ditadura”, a qual estaria patenteada na cassação do mandato do deputado Deltan Dallagnol, por decisão do TSE.
O discurso do ex-general, hoje senador, pode ser lido pelo seguinte ângulo: desde o imediato pós 8 de janeiro, com a virada de página do perigo de golpe, a ideia da democracia reforçou-se mais solidamente. Por isso, ninguém pode hoje se posicionar sobre temas institucionais sem invocar seu nome, mesmo que o faça blasfemando, como no caso de Mourão. Mas essa leitura justificadamente otimista não impede que se repare em riscos que uma recidiva do lavajatismo com sinal trocado representa, no sentido de dar plateia a pregações da extrema-direita e, no limite, conferir, aos olhos da população, alguma plausibilidade ao seu discurso, por mais irracional e inverídico que ele, de fato, seja. Mais que as palavras destituídas de veracidade intrínseca proferidas por um senador de flagrante vínculo com a extrema-direita, importa reparar, por exemplo, no apoio que recebeu, em plenário, de um senador da direita tradicional como Esperidião Amin. Dutos entre distintas direitas podem ainda hoje ser flagrados, tanto no plenário do Senado como num evento de entrega de títulos de posse em São Paulo, na Arena Corinthians, onde o governador Tarciso de Freitas e o deputado Eduardo Bolsonaro trocam elogios em público e com eles se sintoniza, ainda que mais passivamente, o prefeito paulistano, Ricardo Nunes.
Será relevante observar se tais convergências no interior das direitas – um campo largo, hoje submetido a uma dinâmica centrífuga - são resíduos contrafactuais e pontuais de um processo mais geral de lento esgarçamento, ou se podem estar relacionadas, de algum modo, à repercussão pública da recidiva jurídico-policial que invade ambientes das várias mídias e da política brasileira nas últimas semanas.
Palavras e obras no âmbito de cada um dos três poderes da República podem contribuir para adubar ou desabilitar o terreno onde arautos de salvacionismos tentam replantar sementes ideológicas de sua guerra santa contra a legitimidade da política como campo privilegiado de solução de conflitos. No âmbito do Executivo, o presidente e seus ministros negam espaço à recidiva se admitem compartilhar o poder e adotam o diálogo e a autocontenção como métodos de relação com os demais poderes, inclusive construindo pautas legislativas comuns, como se tem feito no caso do arcabouço fiscal; e fazem o oposto se desafiam amplos consensos consolidados no congresso, para tentar passar pautas programáticas do seu campo político, ou mesmo para apenas agitá-las como propaganda. No âmbito do Legislativo trabalha-se para desabilitar a guerra santa se lideranças desse poder admitem se entender por um novo padrão estável e razoável de relacionamento com os demais poderes, mas operam em sentido oposto se almejam tornar perenes poderes assimétricos que exerceram por uma situação política excepcional, vivida durante o ciclo político anterior. Entre mantê-los e voltar ao status quo anterior há mediações possíveis. Buscá-las permanentemente será um forte indicador de normalização democrática.
Por não ter entre as suas prerrogativas participar diretamente da atividade governativa, o Poder Judiciário nem por isso está dispensado de compreender a escolha entre adubar ou desabilitar o terreno em que podem ser plantadas as sementes da recidiva aqui comentada. Ao contrário, é justamente dele - a quem cabe a intransferível tarefa de dirimir, à luz da Constituição, eventuais conflitos entre os poderes governativos e entre esses e seus governados - que se espera um trabalho intermitente para desativar as minas que podem levar o país a situações-limite, como ocorreu algumas vezes durante os últimos anos.
A postura do Poder Judiciário é, aos olhos dos cidadãos, um efetivo termômetro que informa sobre se há normalidade ou alguma enfermidade na vida institucional do país. Quanto mais convencional for o seu agir, mais sensação de segurança e tranquilidade comunicará. Se age no limite da excepcionalidade sinaliza febre alta e abre uma imediata busca de remédios que, numa sociedade complexa e conflitiva, dificilmente podem ser prescritos através de consenso.
Nesse sentido é preocupante que mesmo após o 8 de janeiro e seus desdobramentos benignos, continuem saindo, de palavras e atos de tribunais superiores - ou de altos magistrados que falam por eles - mensagens na direção de que o país prossegue atolado numa situação emergencial que justifica pesar a mão da Justiça, para além do que uma normalidade requer. Saímos de um precipício e entramos num beco? É preciso não deixar a opinião púbica em dúvida sobre se os responsáveis por conspirações golpistas ou por excessos arbitrários no âmbito da Lava-Jato estão respondendo judicialmente sobre um passado ou se seus poderes de produzir fogo são coisa do presente. Diante de um discurso de extrema-direita que afirma estar a democracia sob ataque, vamos reagir mostrando sua falta de veracidade ou concordar com ele sobre o estado de guerra apenas rebatendo as afirmações sobre quem é agressor e agredido? No novo patamar democrático em que estamos, cabe ao Judiciário ser o primeiro a dizer que está sob seu sereno controle uma situação que a polarização política insiste em pintar como agonística. Que embora ainda haja fios desencapados, no governo e na oposição, ao menos as páginas do golpismo e do lavajatismo foram, de fato, viradas, ao serem privadas de condições objetivas de prosseguir. Isso é importante para que não se veja na cerimônia pública da Arena Corinthians um sinal de adesão do governador a veleidades golpistas da extrema-direita e sim uma evidência de que, no novo contexto, não resta objetivamente a um político como Eduardo Bolsonaro senão a disputa política por votos, caso a Justiça mantenha seus direitos. Nessa hipótese invertem-se os papeis e o governador, não a extrema-direita, é polo político. Objetiva e subjetivamente esse ponto é muito relevante.
É claro que nada, ainda mais numa democracia, é definitivo. Por isso é preciso ter cuidado ao apontar extrapolações indevidas em atitudes do Judiciário. As situações variam e precisam ser analisadas caso a caso, não por casuísmo, mas para evitar generalizações estigmatizantes. É inaceitável que se cogite reverter possíveis extrapolações “enquadrando” o Judiciário de modo ainda mais extrapolado, como quer o senador citado, que propõe ao presidente do Congresso “interditar” a cassação judicial do mandato do seu amigo deputado. É querer tratar covid com cloroquina. A crítica democrática a extrapolações precisa ser dosada, sem aderir à narrativa da extrema-direita de que têm sido a regra. Se o caso da cassação do mandato é discutível e se se poderia adotar tratamento menos duro, o mesmo não vale para o rigor usado com os atores dos atos de 8 de janeiro. Não há como fazer disso tudo um balaio.
Extrapolações podem ser melhor criticadas por um discurso positivo. Em vez de corroborar o diagnóstico de que a democracia está se enfraquecendo, compreender que ela ainda convalesce, mas que já avançou o bastante na recuperação para se poder passar de intervenções cirúrgicas a tratamento conservador. Em nenhum dos três Poderes estamos precisando de xerifes, potentados ou guias.
Com esse sentido tem havido várias manifestações na imprensa, partidas de articulistas de variadas inclinações políticas, como Merval Pereira, Malu Gaspar e Maria Cristina Fernandes. Claro que não há aí (nem há motivo para haver) protesto contra um suposto “estado de exceção”, cuja existência povoa mentes terraplanistas e enche bocas apocalípticas da extrema-direita. Mas essa decisão do TSE pela cassação do deputado e várias decisões recentes do ministro Alexandre Moraes, do STF, têm “batido fofo” em ambientes de bom senso democrático e penso que não ajudam a fortalecer nem o Poder Judiciário nem o espaço pessoal de Moraes dentro dele. A tendência é ocorrer algo bem diverso. Alexandre Moraes está se colocando na berlinda e é precipitado concluir que a colegialidade do STF foi anulada. As crescentes críticas a atos específicos de Moraes trabalham a favor de que ela se manifeste.
Refiro-me a um ministro em particular, mas sem intenção de fulanizar um problema mais complexo. É que seu protagonismo pessoal tem estimulado a proliferação de um modus operandi. Penso que é sobre esse protagonismo que a moderação colegiada precisa atuar. O exemplo vem de cima. Pontuo ainda que não é bom caminho o Judiciário desejar ser popular ou assumir para si um papel político, no sentido estrito. Talvez seja esse um ponto sobre o qual devamos nos debruçar mais e melhor.
Pedir moderação tendo em conta o tratamento dispensado a Dallagnol não significa de modo algum esquecer o que ele, Sergio Moro e outros fizeram de arbitrário e ilegal durante a ilusória República de Curitiba que essa fração da Lava-jato julgava existir. Mas creio que para virarmos de fato essa e outras páginas negativas, é preciso abrir mão das pretensões de punição absoluta e de estigmatização eterna. Na política, o perdão – no sentido que lhe atribuiu Hannah Arendt - não supõe esquecimento, mas é o modo de permitir um recomeço. Sem ele ficaremos girando em torno do mesmo eixo de duas pontas. Lembram da lei da anistia, que parte da esquerda combate e ainda quer reverter? Ela foi um desses recomeços regenerativos. O raciocínio positivamente pragmático que deve valer hoje para o que o PT e seus aliados fizeram em governos passados precisa valer também para a obra controversa da Lava-Jato.
Paulo Fábio Dantas Neto, cientista político e professor da UFBa.