A chegada de Ailton Krenak à Academia Brasileira de Letras (ABL) representa mais do que a aceitação de um indígena, é a abertura para uma visão diferente da que caracteriza a literatura ocidental, onde se situa a brasileira. Daí a grandeza do gesto histórico. As mulheres e negros até aqui na ABL fazem parte da mesma concepção da literatura escrita e com a lógica do pensamento ocidental. Krenak traz não apenas a presença indígena, nem apenas representa uma minoria, mas uma estética e uma filosofia que não estavam presentes em nossa Academia. Conforme a tradição de seu povo, sua obra é oral e o mundo que ele descreve tem características, propósitos e entendimento de uma cultura diferente da representada por todos os 330 imortais anteriores que estão ou passaram pela ABL.
Conheci Krenak na casa da professora Alcida Rita Ramos, em Brasília, quando ele ainda não tinha 30 anos e já demonstrava a lucidez alternativa fiel à cultura de seus ancestrais e ambiente, para ele uma só coisa, porque não segrega história da natureza, nem homem da floresta. Desde então, acompanho distante sua trajetória de sucesso e coerência. Poucos anos atrás, fiquei feliz ao ler no início de seu Ideias para Adiar o Fim do Mundo que este livro começou com palestra no Centro de Desenvolvimento Sustentável (CDS), da UnB. Na concepção do CDS, incluímos a visão progressista de que os recursos naturais eram limitados e o crescimento econômico insustentável. Mas essa visão, apesar de progressista, é tradicional. Reconhecia os erros e os limites do progresso, mas continuava presa ao mesmo marco antropocêntrico. Avançava na percepção da finitude dos recursos naturais para atender aos propósitos do desenvolvimento, mas continua considerando a natureza como simples recurso a ser transformado. Naquela palestra que se transformou no livro, Krenak nos trouxe o entendimento de que a natureza e os animais não são apenas recursos para a economia: água, plantas, rochas, a Terra são entidades com as quais é preciso dialogar. A floresta não é fonte de madeira, é sua casa, sua família ampliada, desde seus ancestrais.
“Ele representa uma estética e uma filosofia que não estavam presentes na Academia”
Os críticos ao crescimento avaliam e percebemos limites às ambições econômicas porque os recursos naturais são finitos. Inferiram também que o lixo decorrente da produção levaria à poluição ambiental e mudanças climáticas. A arrogância antropocêntrica foi abalada. Surgiu a necessidade de modéstia diante da natureza e de busca de desenvolvimento sustentável, mas ainda era uma crítica antropocêntrica: o ser humano mantendo o direito de se apropriar da natureza para transformá-la em produtos e lixos. Krenak vai além dessas críticas e desse propósito, trata o projeto humano não apenas como dependente, mas como parte da natureza, a ser ouvida.
Essa é a contribuição que seus livros e suas palestras nos passam ao unir racionalidade com diálogo e solidariedade entre os seres humanos, e desses com todo o mundo natural. Krenak não é apenas um indígena na ABL, é uma entidade cultural que faltava. Os membros da ABL prestaram imenso serviço ao dar-lhe a legitimidade da coroa de imortal. Esperamos que na sua posse ele use o fardão para demonstrar que o establishment ocidental o aceitou, mas não deixe de usar o cocar, que caracteriza sua visão do mundo e sua forma de fazer literatura. O grande momento de sua posse será vestir o fardão, e o fardão aceitar o cocar.
Cristovam Buarque, engenheiro mecânico, economista, educador, professor universitário e político brasileiro filiado ao Cidadania.
Fonte: https://veja.abril.com.br/