O teor e o tom das manifestações bolsonaristas em Brasília e no Rio de Janeiro não deixam dúvida: o presidente da República, Jair Bolsonaro, usou um espaço público que deveria ser dedicado a celebrar o Bicentenário da Independência do Brasil para fazer comícios em sua campanha à reeleição. Foi inequívoca a confusão dos papéis de chefe de Estado e de político em busca de votos.
É verdade que a campanha dele tomou certos cuidados. Depois de assistir ao desfile militar no palanque oficial em Brasília, Bolsonaro subiu num trio elétrico privado para — ao lado de um empresário investigado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), da primeira-dama, do vice Hamilton Mourão, do presidente de Portugal, Marcelo Rebelo, e de outras autoridades— pedir votos, falar mal dos adversários, atacar pesquisas que não lhe agradam e proferir um discurso de nítido conteúdo eleitoral. No Rio, também discursou de um palanque privado, depois de interromper o trânsito na orla da Zona Sul para uma “motociata” até Copacabana.
Mas os cuidados tomados pela campanha de Bolsonaro foram meramente cosméticos diante do que se viu e se ouviu. Ele estava acompanhado de candidatos ao governo, à Vice-Presidência e até de um candidato cassado ao Senado. O palco tradicional dos exercícios militares em homenagem à Independência foi transferido do Centro do Rio para Copacabana em razão do interesse da campanha.
A transmissão sonora deficiente no Rio não impediu que Bolsonaro fosse aclamado por uma multidão, como antes em Brasília. Quem saiu às ruas para assistir ao desfile de blindados e bandas militares, para apreciar a parada naval e as piruetas da Esquadrilha da Fumaça não viu uma celebração em homenagem aos 200 anos da Independência, mas foi engolfado por manifestações políticas, comícios em apoio à candidatura Bolsonaro, cujo objetivo evidente era fornecer imagens de impacto que pudessem ser usadas em sua campanha.
Não há sinal mais eloquente do conteúdo eleitoral das manifestações do que a ausência dos chefes de todos os demais Poderes na celebração em Brasília. Os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e do STF, Luiz Fux, não deram as caras. Ninguém que tivesse uma reputação institucional a defender compareceu. Apenas ministros, políticos e empresários ligados ao governo emprestaram seu apoio.
Juristas enxergaram nos atos e nas palavras de Bolsonaro abuso de poder, violação a leis eleitorais e à Constituição. Cabe agora ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e aos procuradores eleitorais investigar o financiamento, o planejamento e a realização dos comícios de ontem para decidir se leis foram violadas pelo candidato à reeleição e, com base nelas, estabelecer as punições devidas.
É um alento que não tenha havido violência como muitos temiam. Nem ataques a ministros do Supremo ou ameaças golpistas comparáveis às de 7 de Setembro do ano passado. Mas isso não serve de atenuante. O fato de Bolsonaro não ter sido reincidente nos absurdos do passado não significa que não possa ter cometido novas infrações.
Fonte: https://oglobo.globo.com