A menina “XXX”, mal havia pulado da barriga de sua mãe – estava então com seis anos – e já tinha o corpinho infantil invadido por um tio, na época com 29 anos, (um adulto), que a estuprou. Como em todas essas histórias perversas, absurdas e silenciosas, durante quatro anos ela viveu sob a ameaça do parente. Difícil imaginar a revolução interna de sentimentos e conflitos que a assaltaram durante o tempo em que passou por esse pesadelo. Solitariamente.
Seu caso é mais um a confirmar a tese dos estudiosos do tema. O estuprador quase sempre convive com a criança ou vive sob o mesmo teto, ou é um familiar, de acordo com a pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Cristina Neme, ouvida na ocasião da divulgação do 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em setembro de 2019. Para a pesquisadora, a reincidência do perfil indica que “tem algo estrutural nesse fenômeno”. Neme avaliou, na época, que a mudança de comportamento dependerá de campanhas de educação sexual e que o dano exige mais assistência e atendimento integral a vítimas e famílias.
A saga da menina “XXX”, além de ter sido escancarada no noticiário nacional, vai agora engrossar a triste estatística do Anuário, que em 2018 registrou recorde da violência sexual. Foram 66 mil vítimas de estupro no Brasil, maior índice desde que o estudo começou a ser feito em 2007.
A maioria das vítimas (53,8%) foram meninas de até 13 anos. Conforme os números, apurados em micro dados das secretarias de Segurança Pública de todos os estados e do Distrito Federal, quatro meninas até essa idade são estupradas por hora no país. Ocorrem em média 180 estupros por dia no Brasil – foi a constatação daquela versão do anuário -, com um aumento de 4,1% acima do verificado em 2017.
De cada dez estupros, oito ocorrem contra meninas e mulheres e dois contra meninos e homens. A maioria das mulheres violadas (50,9%) são negras. Aqui, uma pausa. Nunca é demais lembrar que os corpos pretos eram violentados rotineiramente nas senzalas país afora, nos 300 anos em que o Brasil os manteve escravos.
Reafirmando a regra citada pela pesquisadora, também desta vez o algoz da menina “XXX” era o tio, agora com 33 anos, localizado em Betim, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Foragido, o ex-presidiário já chegou a cumprir pena por tráfico de drogas, associação criminosa e posse ilegal de arma.
Ainda assim, com toda a sua trajetória de crimes e o abuso cometido, consta que o estuprador estava escondido em casa de parentes, ao ser detido. Nova pausa. Necessária e imprescindível. Se a casa em questão era de parentes dele, isto quer dizer que eram também parentes da menina “XXX”. É preciso nos espantarmos com este fato. E, em seguida, fazermos a seguinte pergunta: como teriam reagido, se em vez do tio, naquela casa onde ele encontrou acolhida, chegasse a menina “XXX”, pedindo ajuda e contando a sua história? Teriam dado a ela o mesmo amparo, estando grávida do tio? Teriam acreditado em sua narrativa? Esta é uma questão a ser levada em conta.
Além de toda a dor física (repetindo: a menina “XXX” tinha apenas seis anos quando foi violentada, sabe-se lá em que condições), os conflitos, angústias e medos, ao procurá-los ela poderia ter de lidar com uma das piores barreiras entre as vítimas do estupro e a denúncia: a incredulidade da família. O julgamento moral. Por que dar guarida para o estuprador de uma parenta de apenas 10 anos? Tomaram conhecimento do porquê ele os procurou e pediu ajuda? Certo é que ele encontrou proteção.
Para a menina “XXX” restou ter de ir para um estado muito distante de casa e ao deitar-se numa maca a caminho do centro cirúrgico – onde sua vida seria salva de um futuro parto de risco -, ouvir o som de um coro de “fundamentalistas” (teria uma série de adjetivos para usar, mas vou ficar neste), que a chamavam de “assassina”.
O que precisamos urgentemente entender é que assassina é a sociedade em que vivemos hoje, onde o ódio não vê idade, condições emocionais, não mede consequências. Tivesse aquela porta de vidro que separava a menina “XXX” e a turba cega pelo preconceito e o fanatismo, se rompido, e a teriam linchado. Na falta do seu corpinho infantil, onde mal cabia um novo corpo, lincharam a razão, lincharam a razoabilidade.
Denise Assis, Jornalista
Fonte: https://www.brasil247.com