Falcões são predadores enquanto pombos se alimentam de frutas, sendo um dos símbolos universais da paz. No contexto político, os “falcões”, diante de uma situação de tensão, especialmente em política externa, tendem a optar por uma retórica agressiva ou por uma solução militar. Na posição oposta estão os “pombos”, favoráveis à resolução de conflitos através negociações diplomáticas.
Pombos e falcões se digladiaram no governo do então presidente John F. Kennedy durante a crise dos mísseis de 1962, quando o mundo esteve à beira de um holocausto nuclear. O núcleo duro do Pentágono defendia uma resposta militar aos mísseis instalados pela União Soviética em Cuba, a ilha de Fidel Castro localizada apenas a 160km de Miami. Já os pombos do Departamento do Estado defenderam, até o último minuto, a solução da diplomacia secreta, que ao final se impôs. O filme “Treze dias que abalaram o mundo” descreve bem o episódio.
Sessenta anos depois daquele impasse, o mundo volta a viver grande momento de tensão entre EUA e Rússia, com potencial de desaguar em uma “guerra total”, tendo a Europa como teatro de operações. Desde o fim da II Guerra Mundial a paz instalou-se no continente graças ao arcabouço institucional construído no pós-guerra.
Agora, o estopim é a crise da Ucrânia, onde pombos e falcões dançam seu minueto. Desde os tempos do czarismo a Ucrânia foi a principal porta de entrada para tropas chegarem a Rússia.
Capitaneando o time dos falcões, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, alardeia que as tropas de Vladimir Putin podem invadir o país vizinho.
Em campo bem diferente vem jogando Emannuel Macron. Em sua visita ao presidente russo, apostou suas fichas na diplomacia, acenando com a retomada do espírito do Acordo de Minsk de 2014, que contemplou um grau de autonomia para as províncias rebeladas de Donets e Luhansk, além do desarmamento dos dois lados e a soberania da Ucrânia sobre seu território.
O primeiro ministro alemão vai visitar a Rússia nesta semana e, ora joga no time da diplomacia, ora engrossa o coro de Biden, dando a entender que tomará medidas drásticas como a suspensão do gasoduto Nord Stream 2, por onde passará o gás russo para a Alemanha, previsto para ser inaugurado ainda este ano. Não é nada fácil adotar essa medida de represália porque ela contraria interesses econômicos da própria Alemanha, dependente do gás russo.
Espremido entre pombos e falcões, o presidente da Ucrânia Volodymyr Zemlinsky tem reclamado do “alarmismo” de Biden e não considera a invasão russa como imediata ou irreversível. Especificamente queixa-se dos Estados Unidos e de outros países da OTAN que pediram aos seus cidadãos para se retirarem a Ucrânia o mais rápido que puderem. Zemlinsky tem razão. O simples anúncio da retirada é um golpe profundo na economia ucraniana. Ninguém vai investir em um país que, segundo os Estados Unidos, está na iminência de ser invadido.
A aposta de Biden no confronto não é só retórica e está em sintonia com recentes movimentos do seu governo, como o pacto militar assinado com a Austrália e o Japão. Estaria, assim, resgatando aspectos da famosa Doutrina Bush, do início dos anos 2000, quando a OTAN expandiu sua influência para países do antigo bloco soviético e até mesmo mentiras foram utilizadas para justificar a guerra com o Iraque.
Biden está armando os grupos de extrema-direita ucraniana, com protagonismo na “Revolução Laranja” de 2005 e na “Euromaidan” de 2014, que derrubou o presidente ucraniano pró Rússia. O perigo é esses grupos paramilitares – como o Batalhão Azov – cumprir a ameaça de voltar as armas contra o atual presidente ucraniano, se Volodymyr fizer alguma concessão às pretensões de Putin.
No outro campo estão as repúblicas separatistas interessadas numa invasão de tropas russas para se afirmarem como país independente. Mas isso não é do interesse de Putin. A continuidade da guerra civil impede a Ucrânia de se integrar na OTAN, pelas normas do tratado.
A Rússia é um país de grandes enxadristas. Putin está dando demonstrações de que entende do jogo ao assumir tanto a postura de falcão como de pombo, combinando a força com a diplomacia.
Como observou a especialista Oksana Antonenko, diretora da consultoria britânica Control Risk, o presidente russo pode estar dizendo a verdade quando afirma não pretender invadir a Ucrânia. Poderia manter suas tropas por meses nas fronteiras ucranianas, apostando na divisão dos países da OTAN, aliados dos EUA.
Esse é o pior dos mundos para Biden, pois teria de enfrentar as eleições americanas de novembro em meio à prolongada crise ucraniana. O risco é o de ficar isolado, externa e internamente.
Há muito jogo a ser jogado. A realização da segunda reunião, nos próximos dias, do Grupo Contato da Normandia – constituído pela Alemanha, França, Rússia e Ucrânia – pode abrir uma vereda para a solução diplomática, como a alcançada em 2014 ao promover o acordo de Minsk.
Relembrando o epílogo da crise dos mísseis em Cuba, por meio de um acordo costurado secretamente, o primeiro-ministro soviético Nikita Kruschev retirou seus artefatos de Cuba e os Estados Unidos, seis meses depois, retiraram seus mísseis da Turquia, além de terem assumido o compromisso de não invadir a ilha.
É possível que o exercício da diplomacia, inclusive a secreta, encontre uma saída. Ela também poderá ser viabilizada pela Organização de Segurança e Cooperação da Europa. A OTAN, como um resquício da guerra-fria, pode não ser o fórum adequado para o entendimento.
Fora isso, resta a não-solução, ou seja, a guerra.
Hubert Alquéres é membro da Academia Paulista de Educação, do Conselho Diretor do Instituto Mauá de Tecnologia e diretor do Colégio Bandeirantes.
Fonte: https://www.metropoles.com