Setembro chega e, com ele, fitas amarelas, postagens com mensagens de apoio e frases como “falar salva vidas” inundam as redes sociais. É o mês da campanha Setembro Amarelo, voltada à prevenção do suicídio. Mas, diante de um cenário em que os números de suicídio e automutilação crescem a cada ano, especialmente entre jovens e populações vulneráveis, precisamos fazer uma pergunta incômoda, mas urgente: será que estamos realmente enfrentando o problema?
Neste artigo, propomos um olhar crítico sobre a campanha, reconhecendo sua importância, mas questionando suas limitações diante de um contexto estrutural que adoece, silencia e abandona. Falar é necessário, sim — mas falar sozinho não basta.
A Campanha e suas boas intenções
O Setembro Amarelo foi criado no Brasil em 2015 pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) em parceria com o Conselho Federal de Medicina (CFM). Inspirada em campanhas internacionais, a iniciativa busca promover a conscientização sobre o suicídio, incentivar o diálogo e combater o estigma que cerca o tema.
A cada ano, ganhamos mais visibilidade: prédios iluminados de amarelo, influencers compartilhando mensagens de apoio, ações de escuta em escolas e empresas. Tudo isso tem valor, especialmente para quem está em silêncio há muito tempo.
No entanto, é justamente aqui que mora o perigo. A campanha, ao ganhar contornos cada vez mais midiáticos, corre o risco de se tornar superficial e simbólica — um grande “abraço virtual” que não alcança aqueles que mais precisam de acolhimento real.
O Silêncio das Estruturas: o que não está sendo dito
Enquanto promovemos o “falar”, ignoramos o que impede tantas pessoas de encontrar um espaço de escuta:
A precarização das condições de vida, com desemprego, informalidade e jornadas exaustivas.
Um sistema de educação que cobra desempenho, mas não cuida da saúde emocional dos estudantes.
A escassez de serviços públicos de saúde mental, com CAPS lotados, poucos profissionais e filas de espera que desestimulam qualquer pedido de ajuda.
As desigualdades raciais, de gênero, de classe e de sexualidade, que expõem certos grupos a violências sistemáticas e sofrimento crônico.
Para muitos, o sofrimento não é um episódio isolado, mas um modo de vida. Falar de suicídio e automutilação sem reconhecer essas condições é como oferecer um colete salva-vidas a quem já está se afogando em alto-mar — e de olhos vendados.
“Falar é importante, mas com quem? Onde? Quando o acolhimento não está disponível, a fala não encontra escuta — apenas eco.”
Automutilação e Suicídio: Corpos que Gritam o que a Boca Cala
O número de jovens que recorrem à automutilação cresce de forma alarmante. Em muitos casos, trata-se de uma tentativa desesperada de lidar com a dor emocional por meio do corpo físico — um pedido de ajuda que não encontra palavras.
Ao mesmo tempo, o suicídio segue como uma das principais causas de morte entre adolescentes e adultos jovens no Brasil. E a resposta institucional? Muitas vezes limitada à medicalização rápida, sem espaço para escuta, vínculo ou compreensão contextual.
Faltam espaços seguros de fala, faltam vínculos, faltam políticas públicas que compreendam o sofrimento como algo que não nasce apenas de dentro, mas do entorno social.
Responsabilidade Coletiva: Muito Além da Consciência Individual
A campanha insiste: “procure ajuda”. Mas e quando essa ajuda não está disponível? Quando o serviço público não atende? Quando a escola ignora os sinais? Quando a família silencia? Quando o trabalho adoece?
A individualização da responsabilidade (“cuide da sua saúde mental”, “busque apoio”) invisibiliza o papel do Estado, das instituições e da sociedade como um todo. Não basta dizer para alguém falar — é preciso que existam pessoas dispostas a ouvir. É preciso redes de apoio, investimentos públicos, políticas de cuidado.
Caminhos Possíveis: Da Escuta Real à Ação Transformadora
Se queremos ir além do discurso, algumas ações são urgentes:
Ampliar o acesso à saúde mental pública e gratuita, com valorização e formação contínua de profissionais.
Garantir que escolas e universidades ofereçam escuta qualificada, sem julgamento ou banalização.
Criar e fortalecer redes de apoio comunitárias, onde o cuidado se baseia na solidariedade e no pertencimento.
Construir políticas públicas intersetoriais que enfrentem as causas estruturais do sofrimento (como a pobreza, a violência e a exclusão).
Fazer com que as campanhas realmente ouçam as vítimas, os sobreviventes e os profissionais da linha de frente, em vez de repetir apenas slogans.
Conclusão: Que Setembro Amarelo Seja um Grito Coletivo por Mudança
O Setembro Amarelo ainda é necessário — mas precisa ser ressignificado. Falar continua sendo um ato político, de resistência e de cuidado. No entanto, precisamos reconhecer que a fala, sozinha, não dá conta de um sofrimento que é, muitas vezes, estrutural.
Que este mês não se reduza à cor amarela, nem a hashtags temporárias. Que ele sirva de convocação à ação coletiva. Porque a prevenção ao suicídio não começa no momento em que alguém pensa em desistir — começa muito antes, quando decidimos construir uma sociedade onde viver seja menos insuportável.
Se você está passando por um momento difícil:
- Ligue para o CVV (Centro de Valorização da Vida) – 188 (24h, gratuito).
- Acesse: https://www.cvv.org.br
Leituras que Aprofundam a Reflexão:
O Tempo e o Cão – Maria Rita Kehl
A Psicologia como Compromisso Social – Silvia Lane
O Mal-estar na Civilização – Sigmund Freud
Educação e Saúde Mental – Vera Iaconelli
Por Ester Gouveia Viana
Psicóloga Clínica|CRP 16/6077
Especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental
Mestre em Mindfulness pela UNIFESP/SP