Um enfrentamento efetivo ao crime organizado e à rápida e preocupante expansão de seu domínio de territórios e atividades econômicas no Brasil, além da infiltração em instituições de Estado, exige mais que megaoperações como a desta terça-feira no Rio de Janeiro, que registrou a maior letalidade da História, levou o caos à cidade e descambou, mais uma vez, para um jogo de empurra entre autoridades.
O caminho mais consistente, que permitirá resultados de longo prazo, para além das baixas de integrantes das facções e de parte de seu arsenal —ambos passíveis de rápida e constante reposição, mantida a lógica atual —, envolve investimento em inteligência e forçosamente uma coordenação sofisticada de esforços entre Poderes e instâncias governamentais.
O que se viu nos complexos do Alemão e da Penha passou longe pelo menos da segunda dimensão. O governo federal e a prefeitura da capital não foram informados da operação. Ao longo do dia, Rio e Brasília protagonizaram uma disputa de versões a respeito da negativa atribuída à gestão Lula a oferecer ajuda pedida pelo estado. No fim, o governador Cláudio Castro reconheceu que os pedidos não foram relativos à ofensiva atual e acabou telefonando à ministra Gleisi Hoffmann para se retratar.
Dado o domínio das facções em grande parte do território do Rio de Janeiro, submetendo fatia imensa da população ao medo, não é possível abordar o problema pelo receituário clássico da esquerda, que preconiza primordialmente ações de longo prazo nas áreas de educação, direitos humanos e ações sociais como caminhos para sair dessa realidade.
Claramente essas são as políticas públicas mais virtuosas, provadas por evidências aos montes em países que as adotaram de modo consistente, mas é óbvio até para o governo federal que a situação já passou do ponto e exige também medidas ostensivas de combate ao aparato das facções que disputam o controle das comunidades no Rio.
Para isso, no entanto, operações de alta letalidade como a desta terça não são sustentáveis nem resolvem o problema, além de embutirem enorme risco à população civil que já vive sob o império do medo e da incerteza quanto ao dia seguinte.
É preciso que governadores, deputados, senadores e o Executivo federal se entendam quanto às propostas legislativas apresentadas para tentar virar o jogo, a PEC da Segurança e o projeto antifacções, este último já propagandeado, mas ainda não enviado ao Congresso. Existem divergências quanto ao poder da União na coordenação dos esforços e sobre se isso retira prerrogativas das polícias e dos governadores?
Que se discuta uma saída que contemple a todos, mas que nos tire da encruzilhada atual em que os governadores cobram ajuda do governo federal quando o bicho pega, mas não querem dividir responsabilidades nem decisões. Esse é um discurso que não fecha e só atende à lógica da polarização eleitoreira.
Lula também precisa abandonar o ranço que ele mesmo já reconheceu da maneira como tradicionalmente a esquerda aborda o tema da segurança. Um ato falho revelando essa visão, que não atende aos anseios manifestados pela população em inúmeras pesquisas, foi cometido por ele na viagem à Malásia. Ontem a frase sem pé nem cabeça segundo a qual traficantes são “vítimas” de usuários reverberava entre os que fustigavam o governo federal pela carnificina no Rio.
Por fim, é preciso firmeza para que o Estado se mostre apto aos olhos do mundo para enfrentar o crime organizado, de modo que a investida do governo Trump na América Latina, sob a justificativa de combater o crime organizado, não passe a abranger também o Brasil. Isso poderia até prejudicar as auspiciosas negociações com os Estados Unidos para a supressão do tarifaço e das sanções contra autoridades brasileiras.
Vera Magalhães, jornalista
Fonte: https://oglobo.globo.com/
