Há uma série de variáveis que devem ser consideradas nas eleições deste ano. A primeira, e mais importante, é o efeito da pandemia no pleito. A mudança do calendário eleitoral é a face visível da influência pandêmica. Porém, o debate sobre a efetividade das administrações municipais no enfrentamento da doença, associado com o comportamento das lideranças dos municípios em relação às posições dos governos estadual e federal durante a crise sanitária certamente mobilizarão parte das pautas e debates eleitorais.
Mas, não nos enganemos: o resultado das eleições tende a ser definido por questões objetivas que estão relacionadas ao contexto de cada município (as políticas públicas de saúde, educação, transporte, moradia, etc.), mas, também e não menos importante, com os apelos emotivos, relacionados a crenças, percepções e sentimentos que candidatos e partidos costumam utilizar, em doses cavalares, nos pleitos municipais.
Por isso, é muito importante observarmos alguns elementos que podem caracterizar essa eleição como uma disputa a reconfigurar não somente a política municipal, mas a política nacional.
1. A participação de lideranças ligadas às igrejas, principalmente neopentecostais: há claramente uma disputa eleitoral que se consolida no campo religioso. As pautas morais se constituem no principal instrumento de alavancagem de candidaturas e de políticos eleitos ligados ao chamado neopentecostalismo. Estudos e depoimentos apontam um projeto político de tomada de poder do Estado por algumas igrejas evangélicas.[1]
Tendo como base dados iniciais divulgados pelo TSE, o portal UOL identificou pelo menos 5.555 candidatos que usam alguma referência religiosa no nome da urna. Contudo esse número despreza candidatos que não declararam sua filiação religiosa em seu registro eleitoral.
Evangélicos têm disputado vários postos na política nacional e também na política municipal. Nas eleições para conselheiros tutelares, no ano passado, por exemplo, chamou a atenção o interesse de religiosos e membros de igrejas na ocupação de lugares estratégicos na arena política: dezenas de igrejas inscreveram seus representantes nas eleições para os Conselhos Tutelares. Os temas morais, importantes na pauta da defesa de criança e adolescentes, mobilizaram os candidatos dessas igrejas.
Na avaliação da mídia empresarial, a disputa se dava entre católicos e evangélicos, e espelhava o crescimento de igrejas protestantes no Brasil[2]. A eleição para conselheiros tutelares explicitou uma “batalha religiosa” em curso no Brasil. Nos últimos 20 anos, a bancada evangélica no Congresso Nacional triplicou: a atual legislatura conta com 195 dos 513 deputados, o equivalente a 38% do total de parlamentares. “A atual bancada evangélica é a mais governista dos últimos cinco mandatos presidenciais. 90% dos votos registrados pelos evangélicos foram a favor do governo (Bolsonaro)”.[3] E como se percebe, cada vez mais líderes, deputados e ministros ligados às igrejas evangélicas ocupam espaço nas áreas estratégicas do governo.
A utilização da religião, notadamente do cristianismo, tem caracterizado a nova extrema-direita global, como revelou recentemente o vaticanista Iacopo Scaramuzzi em um livro recém-publicado, intitulado Dio? In fondo a destra – perché i populismi sfruttano il cristianesimo (em tradução literal, Deus? No fundo à direita – Porque os populismos desfrutam do cristianismo), cuja capa estampa quatro dos principais expoentes desse fenômeno: Salvini, Trump, Bolsonaro e Putin.
Não sem motivos, em seu discurso na abertura da Assembleia Geral da ONU, em 22 de setembro, o presidente Jair Bolsonaro usou o polêmico termo “cristofobia” que sinaliza uma estratégia eleitoral voltada ao público evangélico. Segundo Ronilso Pacheco, pastor evangélico e estudioso das religiões, o termo cristofobia vai ser usado como estratégia eleitoral decisiva nas próximas eleições.[5]
Mais recentemente, Bolsonaro evocou um lema do integralismo, “Deus, pátria e família”, num discurso para mobilizar sua base de apoio ultraconservadora e fundamentalista. O integralismo, diga-se de passagem, se constituiu no Brasil a partir da década de 1930 como uma espécie de “fascismo à brasileira”, com movimentos de viés religioso, e foi fundamental na construção de uma base social para o golpe militar de 1964. Portanto, manipulação da religião parece se constituir numa das tônicas dessas eleições.
Há uma pequena reação de candidaturas religiosas progressistas articuladas por coletivos evangélicos. É preciso acompanhar esse movimento.
2. Outro grupo não menos importante que está bastante coeso na disputa eleitoral deste ano, também associado a questões religiosas, é ligado ao militarismo. Segundo o portal G1, “a eleição de 2020 já é a disputa municipal com o maior número de candidatos policiais e militares dos últimos 16 anos. Em números absolutos, são 6,7 mil postulantes aos cargos de prefeito, vice-prefeito e vereador em todo país, superior ao total registrado em 2012. O aumento dessas candidaturas também é de 12,5% em relação à eleição de 2016.” Esses números podem ser ainda maiores porque há casos de policiais ou militares que se autodeclaram apenas servidores públicos.[6]
Uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontou que o segmento militar está muito associado ao bolsonarismo.[7]
Há que se observar que alianças entre o neopentecostalismo e o militarismo se dão em várias frentes. A bancada intitulada BBB (Bala, Bíblia e Boi) é o caso mais emblemático. Mas, não é somente isso. Reportagem da Revista Fórum, de janeiro de 2020, intitulada “Igreja Universal cria seu exército particular com recrutamento de PMs” apresenta um vídeo institucional da “Universal nas Forças Policiais (UFP)”, braço da igreja de Edir Macedo nas “Forças de Segurança Pública, Forças Armadas e órgãos governamentais”. Segundo o vídeo, a Universal atingiu 983.441 policiais e familiares no ano de 2019, em 73.526 palestras, eventos e cafés realizados, e doado 439.471 “Bíblias e literaturas”.[8]
Observemos que o governo Bolsonaro é claramente um governo militarizado. Como informou recentemente o El País, o Brasil de Jair Bolsonaro já tem, proporcionalmente, mais militares como ministros do que a vizinha Venezuela, onde há muito tempo as Forças Armadas abdicaram da neutralidade e se tornaram fiadoras da permanência de Nicolás Maduro no poder[9]. Isso sem contar os militares colocados em milhares postos-chave do governo brasileiro. Portanto, militarismo e religião são duas bases sociais importantes na disputa eleitoral deste ano que podem ajudar na reconfiguração a composição de forças política mais amplas. Não à toa, a guinada bolsonarista para o chamado “centrão” que acolhe boa parte dessas candidaturas aponta uma estratégia ambiciosa da extrema-direita no Brasil.
3. Um outro ponto importante a gerar prejuízos no processo eleitoral será, certamente, a utilização ampla das chamadas fake news. Não por acaso, notícias falsas são muito utilizadas por lideranças religiosas apelando para o universo simbólico que envolve a fé, crença e a religião.
Apesar de o TSE ter agido preventivamente com uma série de parcerias com redes sociais e aplicativos de mensagem com vistas a identificação e punição de propagadores de notícias falsas, os especialistas têm alertado que esse “submundo” altamente apelativo dificilmente será controlado nas eleições. E, como se sabe por uma série de estudos nacionais e internacionais relativos a pleitos ocorridos na última década, a utilização de notícias falsas tem o poder de interferir no debate democrático, alterando resultados eleitorais.[10]
4. O discurso que combina criminalização da política com a ideia de renovação política é bem presente no imaginário do eleitor. Neste sentido, há que se observar que partidos do espectro da direita e da extrema-direita, principalmente novos partidos surgidos na última década, têm sido exitosos nas eleições justamente pela capacidade de apresentarem “novos” candidatos ou outsiders da política.
Em contrapartida, há pouca renovação de lideranças políticas a disputarem o pleito nos partidos de esquerda. Tais partidos ainda são muito apegados em candidaturas já experimentadas e que muitas vezes têm pouca possibilidade de sucesso eleitoral num ambiente tão polarizado ou já foram rejeitadas nas urnas. Além da pouca capacidade de renovação e do distanciamento das bases sociais, em geral, a preservação de quadros históricos parece orientar as burocracias partidárias da esquerda. Ou seja, a esquerda apresenta-se pouco criativa frente ao movimento ultraconservador que se organiza no Brasil desde 2013.
5. É importante registrar, por fim, um elemento novo nessas eleições municipais: as chamadas candidaturas coletivas, majoritariamente no campo progressista, que merecem toda atenção. Porém, há que se verificar, depois do pleito, a viabilidade desse tipo de candidatura.
Estes são alguns pontos que merecem atenção dos setores democráticos e progressistas neste pleito de 2020. Apesar de as eleições municipais, ordinariamente, focarem nos debates acerca dos temas municipais, há uma série de elementos que indicam articulações com o objetivo de ampliação das bases políticas de partidos do espectro conservador e ultraconservador. Não à toa, a aliança de ocasião com o “centrão” reposicionou o governo Bolsonaro no Congresso Nacional, arrefeceu os atritos com o Supremo e, sob o ponto de vista eleitoral, poderá significar um adensamento dessa base partidária com vistas às articulações para 2020.
Enquanto isso, há um “bate-cabeça” entre os setores progressistas e de esquerda. Portanto, essas eleições na pandemia apresentam-se como verdadeiro pandemônio. Sempre na esperança de que dias melhores virão...
Robson Sávio Reis Souza, Doutor em Ciências Sociais e pós-doutor em Direitos Humanos
Fonte: https://www.brasil247.com