Após a avalanche bolsonarista contra a democracia e o sistema político montados pela Constituição de 1988, o próximo governante terá uma enorme tarefa de reconstrução das instituições e das políticas públicas. Mesmo com milhões de votos, nenhum presidente conseguirá governar sob os escombros do bolsonarismo de forma voluntarista e personalista. No entanto, um dos pontos de preocupação para o próximo período é como retirar o poder excessivo dado ao Centrão liderado por Arthur Lira, especialmente mudando o modelo orçamentário controlado por esse grupo. A necessidade de construir alianças amplas sem repetir o padrão predatório atual só tem uma saída: reconstruir o conceito de coalizão.
O termo presidencialismo de coalizão é, ao mesmo tempo, tomado como algo constante, mas que geralmente recebe uma dupla interpretação. Os seus críticos dizem que ele é a origem de todos os males da corrupção. Embora em diversas ocasiões a necessidade de se construir maiorias parlamentares tenha sido alimentada por recursos escusos, isso não é uma lei de ferro.
A distribuição de ministérios e a divisão orçamentária conforme o apoio recebido são peças-chave que podem até gerar, em determinadas circunstâncias, erros de políticas públicas, porém não são, intrinsecamente, mecanismos corruptos de governança.
Não há chances de se montar um governo num país multipartidário, federativo e complexo socialmente como o Brasil sem a distribuição do poder e dos recursos entre aliados diferentes dos partidários mais fiéis do presidente.
A alternativa a esta situação é o presidencialismo imperial, numa versão autocrática mais branda ou mais autoritária. Por este caminho não será possível reconstruir o que foi destruído por Bolsonaro, nem fazer reformas necessárias para enfrentar os desafios do século XXI.
A outra interpretação sobre o presidencialismo de coalizão é de que ele seria um jogo institucional mais vinculado às relações entre o Executivo e o Legislativo, com um padrão derivado principalmente das regras institucionais. Essa explicação está correta em mostrar o poder de agenda do governo e de suas ferramentas de construção de maiorias parlamentares. Mas o modelo de montagem das coalizões governativas não foi igual em todos os mandatos desde Sarney, inclusive em presidências com graus similares de sucesso legislativo.
Dito de outro modo, os modelos de coalizão dependem de combinações institucionais que derivam das escolhas presidenciais e do contexto mais geral que as circundam. O estilo de liderança presidencial é uma peça-chave em dois sentidos: em sua capacidade de negociar com os diversos atores políticos e sociais, bem como nas ideias de seu projeto de governo. Os cargos são distribuídos para aprovar determinadas reformas e não outras, e, dependendo do sucesso ou fracasso das políticas públicas do presidente, sua capacidade de obter maiorias parlamentares se modifica.
A liderança presidencial, ademais, não se refere apenas ao jogo entre os poderes Executivo e Legislativo. Ela dialoga com outras estruturas institucionais, setores sociais e projetos de país. Assim, a maneira como o presidente constrói suas relações com o sistema de Justiça afeta sua capacidade de mudar estruturas seguindo os requisitos legais. É preciso evitar vetos e surpresas, como “esqueletos financeiros”, vindos do Judiciário.
No mesmo sentido, a forma como o comandante do Executivo federal dialoga e se articula com os outros entes federativos tem um impacto muito grande sobre as políticas públicas, pois sua execução é basicamente descentralizada, mas governos estaduais e, sobretudo, municipais precisam do apoio da União para aumentar sua efetividade na redução da desigualdade no acesso dos direitos e na qualidade da prestação dos serviços públicos. E aqui não se pode esquecer que governadores e prefeitos são cobrados pela implementação das ações, mas o governo federal é considerado pelos eleitores como o responsável último pelo bem-estar da população. Daí que é necessário ter uma coalizão presidencial não só com o Congresso Nacional, mas também com a Federação.
Mais uma lição de mais de 30 anos de presidencialismo de coalizão é que, a cada novo governo, a trajetória anterior influencia o processo, seja para delimitar o que é possível e o que deve ser feito, seja para criar aprendizados sobre os modos de governança.
O Orçamento secreto, por exemplo, é concomitantemente uma barreira para a capacidade de governar do próximo presidente e uma lição do que não deve ser feito, uma vez que a fragmentação dos recursos gerada por este modelo enfraqueceu a organicidade das políticas públicas do governo Bolsonaro - hoje, muitos eleitores não votam pela reeleição porque programas importantes para suas vidas e de suas famílias, como o Farmácia Popular e a Merenda Escolar, perderam dinheiro e prioridade.
O próximo presidente terá de montar maioria no Congresso Nacional, restabelecer relações amistosas com o STF, construir parcerias com a sociedade, em seus diversos grupos, e com a Federação. Logo, será necessariamente um governo dependente de coalizões, mas que terão especificidades do momento presente. Haverá a necessidade de muito diálogo e negociação, sendo que grande parte do sucesso desse arranjo político dependerá de quatro fatores.
O primeiro é a escolha dos temas certos para angariar apoio político e social, e que sejam também capazes de gerar resultados ou percepções de sucesso rápidos, para que assim eles fortaleçam a coalizão. Em geral, não é um único assunto nem de uma área só. O mais provável é que o próximo presidente tenha que ter uma agenda econômica de estabilização das expectativas junto com uma agenda social mobilizadora, tanto no plano da melhoria das condições de vida da população mais vulnerável, como em aspectos importantes no plano do desenvolvimento e mesmo no âmbito simbólico, como as questões ambientais, educacionais e culturais.
A sustentabilidade da coalizão dependerá ainda de um modelo mais vinculado à divisão do poder do que à distribuição fragmentada dos recursos. Esta é a forma de sair do Orçamento secreto e de trazer ganhos políticos para um grupo que forme maioria parlamentar. Neste jogo, a negociação com a Câmara e com o Senado são diferentes, pelos momentos diferentes de carreira em que estão estes parlamentares, e esse processo diferenciado começará já na eleição do presidente das duas Casas legislativas. Vale lembrar que embora devam ser levados em conta os diferentes grupos sociais e regionais que compõem o Legislativo, o foco básico das conversas e acordos devem ser os partidos, pois por essa via o apoio fica mais orgânico e possível de ser cobrado.
Um terceiro fator essencial é fazer uma repactuação federativa e no campo das políticas públicas. O Brasil precisa reconstruir todos os setores governamentais que foram destruídos pelo bolsonarismo e, para isso, o melhor caminho é a liderança presidencial pactuar com os governadores e prefeitos, além das comunidades de especialistas de cada área. Desse modo, ganha-se legitimidade e apoiadores para além do Congresso - ou até para pressioná-lo -, como ainda se escolhe uma via com mais chances de gerar melhorias no bem-estar da população.
O presidencialismo de coalizão é uma pacto governativo institucional, mas ele necessita de um projeto maior de governo que o oriente. Daí que o quarto elemento viabilizador desse processo é a existência de uma proposta que conte com apoio econômico, social e inclusive cultural, no sentido de valores comuns. Fernando Henrique e Lula mantiveram sua base legislativa forte não somente porque usaram as ferramentas institucionais corretas.
A força de ambos estava em ter um norte para o país, compartilhado com grupos influentes e que gerava boa popularidade. Mesmo com essa estrutura básica, a todo momento é preciso construir e reconstruir a coalizão, a partir das mudanças conjunturais, dos desafios que surgem, dos resultados das políticas públicas e do acompanhamento das mudanças de cálculo estratégico dos atores políticos.
O próximo presidente terá de ter uma agenda que combine temáticas de centro-esquerda com questões mais afeitas ao centro ou à centro-direita. A confusão causada pelo bolsonarismo enfraqueceu a rede de proteção social, piorando a situação de vida da população mais vulnerável. Em poucas palavras, os pobres têm de ser, efetivamente, prioridade máxima para o futuro governante. Mas elementos vinculados à inovação e à competitividade econômica, bem como à responsabilidade fiscal, também têm de ser levados em conta para criar um ciclo de produção de riqueza que favoreça o país a ter uma estratégia robusta, institucionalizada e de longo prazo de combate à desigualdade.
Não será um caminho fácil reconstruir o conceito de coalizão, por fim, porque de fato uma grande parcela da população ainda o associa à corrupção e aos piores hábitos políticos. Se não se pode governar o Brasil sem construir alianças e agendas amplas, como se argumentou até agora, o pulo do gato é fazer do necessário um novo modelo de governança. O presidente que conseguir fazer isso terá não só uma boa popularidade, mas entrará para a história como um estadista.
Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
Fonte: https://valor.globo.com