Sérgio Moro saiu do governo batendo a porta. Foi um sinal de que compreendeu -- mesmo tardiamente -- que não poderia retomar o projeto de uma carreira de candidato presidencial sem tomar distância de Bolsonaro e do bolsonarismo.
Com a auto suficiência de quem se imaginava capaz de alimentar uma candidatura própria nas fileiras de um governo cujo presidente pretende disputar a reeleição, possivelmente naqueles projetos estranhos que querem durar 1 000 anos, Moro percebeu o sinal de perigo para pedir demissão com alguma indignação antes de ser demitido como traidor sem escrúpulos.
A saída lhe permite, ao menos em teoria, iniciar a nova fase da vida embalado por um discurso que pode lhe abrir portas no debate político, ao menos nos próximos meses.
Aliados de sempre -- a começar pelas Organizações Globo -- já se mobilizam nessa direção.
Considerando que também foi assim na eleição de 2018 e nos meses seguintes, quando o mito Lava Jato trocou alianças com o mito da nostalgia do porão da ditadura, nada impede que aliados e adversários apontem o dedo para fazer a mesma pergunta: por que só agora?
É correto considerar que toda ruptura com um projeto de ditadura sempre deve ser benvinda, pois reduz o poder de ação de um sistema dedicado a sabotar um regime de liberdades conquistado com luta e sacrifícios, inclusive de vidas humanas.
Na vida real de todo dia, não basta buscar apoio em afirmações de princípio. Cabe recordar uma lição necessária: não se pode receber o bônus sem pagar o ônus.
No discurso de saída, Moro lançou uma isca dirigida a seu adversário de ontem, hoje e amanhã, o Partido dos Trabalhadores. Elogiou o PT por respeitar a autonomia das investigações da policiais, uma prática iniciada por Lula e prosseguida por Dilma. Arrancou suspiros de satisfação dos menos atentos.
No mesmo e único pronunciamento até aqui, porém, confirmou o costume de aplicar bons princípios de modo seletivo. Num episódio que também envolve autonomia entre poderes, assumiu a agressividade de um anti-lulismo nada democrático e petrificado ao manifestar apoio a operação da Polícia Federal que em julho de 2018 fechou a porta da cela de Lula em Curitiba, quando havia uma ordem judicial impecável para que fosse colocado em liberdade.
Recuperada pelo grande Zé de Abreu, uma das frases indispensáveis do atual momento político do país ( “eu sei o que você fez no verão passado”), está condenada a acompanhar toda personalidade que tentar atravessar as águas turbulentas que levaram o país ao “tudo isso que está aí” mas não é capaz de dar explicações convincentes para seu gesto.
Nada disse de satisfatório, até hoje, sobre os diálogos da Vaza Jato. Tampouco justificou de modo aceitável a sentença que condenou Lula por um imóvel que nunca lhe pertenceu.
Num Brasil com uma crescente fileira de arrependidos do bolsonarismo -- na política e na cultura, entre figurões e anônimos -- Moro é o maior exemplo dessa condição.
Para quem dispõe, em todos os levantamentos, do primeiro lugar nas pesquisas de 2022, a reação de possíveis eleitores de Moro, neste fim de semana, traduziu um dos típicos estados mentais de nossa república -- a bestificação.
Alguma dúvida?
Paulo Moreira Leite é jornalista, ocupou postos executivos na VEJA e na Época, foi correspondente na França e nos EUA
Fonte: https://www.brasil247.com