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Propostas para aborto e drogas ignoram realidade

Propostas para aborto e drogas ignoram realidade

É preocupante que a Câmara tenha dado celeridade a duas propostas que mereceriam mais discussão com a sociedade e deveriam seguir todo o trâmite legislativo, com debates exaustivos em comissões antes de irem a plenário. A primeira é o Projeto de Lei (PL) que equipara o aborto depois da 22ª semana de gravidez ao crime de homicídio. A segunda é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que criminaliza posse e porte de qualquer quantidade de droga. As mudanças são inspiradas mais em convicções políticas, ideológicas ou religiosas que no conhecimento acumulado sobre ambos os temas.

De acordo com o PL que trata do aborto, mesmo nos casos em que o procedimento é hoje legal — estupro, risco de vida para a gestante ou anencefalia do feto —, ele seria considerado homicídio depois da 22ª semana de gravidez. É verdade que o Código Penal não impõe limite de tempo nos casos previstos em lei e que abortos com gestação avançada suscitam uma discussão que mexe com convicções morais e religiosas profundas. Por isso mesmo, a questão merece debate exaustivo.

Numa situação-limite, a proposta puniria a vítima de estupro com mais rigor que ao próprio estuprador. No caso de uma mulher adulta que tenha sido estuprada e só conseguido abortar depois da 22ª semana de gravidez, este poderia receber pena entre seis a dez anos de prisão, enquanto a vítima poderia ser condenada a 20 anos. O PL não leva em consideração que muitas vítimas de estupro retardam a interrupção da gravidez não por vontade própria, mas pelas circunstâncias. Boa parte dos estupros de crianças e adolescentes ocorre em casa. Por inocência, ignorância ou medo — em geral, os estupradores são próximos das vítimas —, muitos agem tardiamente. Não se podem ignorar também as dificuldades impostas ao aborto legal. Nesses casos, os termos propostos no projeto se tornariam uma punição às vítimas.

Quanto à PEC das Drogas, ela não resolve a maior deficiência da lei em vigor: distinguir usuário de traficante. Seus defensores afirmam que a ideia não é prender usuários, mas certamente é o que acontecerá se não houver critério objetivo definindo a quantidade de droga que separa um do outro. O projeto avançou justamente quando o Supremo Tribunal Federal discute parâmetros para sanar essa lacuna da lei. Deixar a avaliação a critério da interpretação de policiais e juízes, como hoje, preserva uma ambiguidade nociva.

A Lei Antidrogas, de 2006, teve efeito contrário ao pretendido, levando ao encarceramento em massa de cidadãos flagrados com pequenas quantidades. A ausência de parâmetros objetivos cria distorções e injustiças. Jovens, negros e pobres são presos com mais frequência. Põe-se na cadeia um enorme contingente que não deveria estar lá, favorecendo organizações criminosas que obtêm nos presídios mão de obra para suas atividades ilícitas.

O Congresso é o foro adequado para discutir questões que despertam controvérsia, como drogas ou aborto. Mas não há motivo para queimar etapas. O correto é seguir o trâmite das comissões, para que todos os aspectos delas sejam analisados com serenidade e confrontados com o conhecimento de ponta. Visões conflitantes sempre enriquecem o debate. Aborto e drogas são, antes de tudo, problemas de saúde pública. Por isso a legislação a respeito deveria ser debatida de forma madura, desvinculada de preconceitos.

Fonte: https://oglobo.globo.com/