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Prodígios da polarização

Prodígios da polarização

É possível estar objetivamente errado numa questão qualquer, mas conservar coerência lógica ao sustentar essa posição. Também é possível estar materialmente errado e ainda por cima naufragar no quesito consistência.

Bolsonaro e seus simpatizantes, por exemplo, dizem ser amplamente favoráveis à liberdade de expressão e acusam o STF de cerceá-la. Estou entre os primeiros a reconhecer que o Supremo em mais de uma ocasião avançou o sinal, mas é preciso ter perdido o juízo para acreditar que a direita bolsonarista é realmente favorável à liberdade de expressão. Para início de conversa, eles são entusiastas do regime militar, que não hesitou nem por um instante em censurar as opiniões que não lhe agradavam e chegou a matar muitos dos que as exprimiam.

Mais recentemente, quando eu externei meu pensamento de que torcia para que a Covid matasse Bolsonaro, em vez de apenas dizer “esse é um assunto em que discrepamos”, como conviria a reais defensores da liberdade de expressão, os bolsonaristas puseram a Polícia Federal em meu encalço.

Algo parecido pode ser dito de Elon Musk. Ele se diz um absolutista da liberdade de expressão, mas aceita como um carneirinho imposições censórias da Índia e da Turquia, com cujos governantes mantém certa proximidade.

O Conselho Federal de Medicina incorre em pecado semelhante ao lidar com o venerando princípio da autonomia do médico. O CFM invocou essa regra para defender a prescrição “off label” de cloroquina para o tratamento da Covid-19, mas a ignorou quando tentou banir a prescrição “off label” de CBD, um dos princípios ativos da maconha.

Vale destacar a força da polarização afetiva. É esperado que ela gere efeitos no campo da política e, portanto, da liberdade de expressão, mas é surpreendente que esses efeitos se estendam para a farmacologia. A polarização está agora produzindo fármacos “de direita”, como a cloroquina, e drogas “progressistas” como o CBD.

Hélio Schwartsman, jornalista

Fonte: https://www.folha.uol.com.br/