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Presidencialismo raptado

Presidencialismo raptado

Com Jair Boldsonaro na Presidência – se é que podemos chamar o último quadriênio presidencial de Presidência no sentido clássico – ocorreu não só um desmonte da estrutura estatal como um confronto com os outros dois Poderes como nunca tinha ocorrido desde a promulgação da Constituição de 1988.

Na relação específica com o Legislativo, principalmente no último biênio da Presidência, houve um inédito pacto anti-impeachment que andou pela transferência de atribuições do Executivo para o Legislativo. O presidente da Câmara dos Deputados passou a ser, informalmente, um primeiro-ministro sem ter autorização legal, ou melhor, respaldo constitucional.

Um ministro para ter a liberação de verbas do seu ministério não ia ao Palácio do Planalto, mas à sala do presidente da Câmara dos Deputados. Foi uma espécie de semipresidencialismo improvisado, de viés mais para tergiversar os impeditivos constitucionais do que uma solução original para alguns entraves nas relações entre os dois Poderes.

Surgiram mecanismos supostamente legais, como o orçamento secreto e as emendas-pix. Tudo à margem da lei, como se fosse um golpe da velha malandragem, aquela retratada no clássico Malagueta, perus e bacanaço de João Antonio. Nada muito sofisticado. De secreto teve pouco.

Foi tudo às claras e revelado com amplas informações e detalhes impossíveis de serem negados. Em seguida, num aperfeiçoamento desse sistema absolutamente antirrepublicano, surgiu uma inovação: a emenda pix, que não permite acompanhar como o recurso público vai ser gasto violando explicitamente, no mínimo, o artigo 37 da Constituição.

Esse arranjo oportunista, restrito a um presidente que não tinha compromisso com os valores republicanos, acabou gerando um monstro. O presidente da República fica de mãos atadas, como se vigorasse no Brasil um semipresidencialismo tupiniquim, mais ao estilo português do que o francês. Vale destacar que nenhum dos dois estão inscritos na Constituição.

Assim, o presidente da Câmara – no caso do Senado a relação é mais republicana – acabou obtendo poderes absolutamente inconstitucionais, usurpando a vontade popular expressa nas urnas quando das eleições de outubro.

Numa linguagem mais direta, Arthur Lira sequestrou (politicamente falando) o voto de milhões de eleitores. Não custa lembrar que ele é apenas um dos 513 deputados federais. Esse impasse vai ter de ser rapidamente resolvido sob o risco de ocorrer um enfrentamento, no limite, entre os poderes Executivo e Legislativo.


Marco Antonio Villa é um historiador, escritor e comentarista político brasileiro

Fonte: https://istoe.com.br/