Em setembro de 1990 nasceu a Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza. Nasceu também um novo Miguel, uma nova versão de mim mesmo, disposto a me dedicar por uma causa em um cenário que há 30 anos era ainda muito pouco explorado no Brasil e no mundo, principalmente por empresários. As temáticas do investimento social privado e da conservação da natureza ainda eram incipientes, e a sociedade de modo geral não estava engajada com causas ambientais como atualmente. Isso ficava muito a cargo de ambientalistas, cientistas e algumas poucas ONGs.
Estávamos uma década após a criação da Política Nacional do Meio Ambiente, de 1981, e dois anos antes da Eco-92, segundo grande evento sobre meio ambiente realizado no mundo. Um marco para a conservação ambiental mundial. Assim, com a criação da fundação e a decisão de destinar 1% de nossa receita líquida anual para ações de cunho socioambiental, de certa forma também anunciamos no Brasil uma tendência mundial.
Tanto nós quanto a sociedade em geral ainda estávamos aprendendo o que sustentabilidade significava na prática. Eu mesmo pude sentir na pele que a proposta da fundação estava à frente de seu tempo. Nos primeiros encontros com pesquisadores e ambientalistas, eles duvidavam das minhas intenções e me enxergavam como um capitalista selvagem querendo manter uma reserva simplesmente para extrair essências da vegetação.
Para as pessoas, era muito difícil acreditar que um empresário podia estar interessado em cuidar do que precisa ser preservado. Parecia ser um pouco incoerente. Isso aconteceu até mesmo com Miguel Milano, engenheiro florestal que na época me ajudou a criar a fundação e, posteriormente, atuou por cerca de 15 anos como nosso diretor-executivo.
Sem contar os “adversários” que ganhamos de presente. Tentem imaginar um país com uma política ambiental ainda jovem, com tantas riquezas naturais quanto o nosso, a quantidade de gente tirando proveito de seus recursos de forma indiscriminada. Se hoje isso ainda acontece, imagine há 30 anos.
No começo, incomodamos muita gente. Fomos alvo de fake news e até mesmo de ameaças por apoiarmos projetos que se propunham preservar a natureza e que acabavam por interferir em interesses de pessoas que estavam verdadeiramente mal-intencionadas. Isso foi um baque para mim, e fiquei com medo de gerar efeitos negativos e atrapalhar os negócios do Boticário. Eu estava consciente de que enfrentaria desafios, mas não contava com esse tipo de situação.
Por isso, a nossa escolha foi fazer o que tinha de ser feito, de forma mais independente dos negócios possível. Tanto que nunca utilizamos as nossas reservas para produção de matéria-prima, para não misturar as coisas. Também jamais usamos a fundação como estratégia de marketing institucional para a empresa. Todos os louros que as ações da fundação geraram para os nossos negócios foi pura consequência.
Mas tudo isso fez parte do nosso desenvolvimento e, com o tempo, fomos ganhando maturidade e aprendendo a lidar melhor com os desafios da nossa visão pioneira e diferente do que era conhecido até então. Nossos resultados consistentes e a forma transparente como sempre conduzimos nossas ações nos concederam credibilidade não só com ambientalistas e pesquisadores, mas com jornalistas, governos, sociedade civil e, sem dúvidas, abrimos caminhos para que outras organizações pudessem atuar com investimento social privado e em conservação sem tantos tabus.
Começamos financiando projetos de pesquisadores de espécies ameaçadas de extinção. Acreditávamos que mapear e resgatar o que estava em risco era o primeiro passo para uma estratégia de conservação eficaz. Até hoje, a Fundação já apoiou mais de 1.600 iniciativas, mapeou mais de 270 espécies da fauna e flora brasileira em extinção e contribuiu com a descoberta de mais de 170 espécies de animais e plantas.
Depois, entendemos que podíamos ir além e que, mais do que espécies, é preciso preservar ecossistemas inteiros. Escolhemos a mata atlântica e o cerrado, por serem os biomas mais ameaçados do nosso país. Em 1994, fizemos a aquisição da Reserva Natural Salto Morato, em Guaraqueçaba (PR), e, em 2007, a Reserva Natural Serra do Tombador, em Cavalcante (GO).
Decisões muito acertadas, pois intensificamos o financiamento de pesquisas e projetos em nossas reservas e, por termos maior governabilidade sobre os territórios, as descobertas de novas espécies também começaram a surgir com maior frequência. Hoje, a Reserva Natural de Salto Morato é um dos ecossistemas mais complexo e diverso em termos de mata atlântica e encontra-se em um território reconhecido como Patrimônio da Humanidade pela ONU.
Agora, atingindo sua idade adulta, estamos passando por mais uma importante transformação. Com a experiência que adquirimos, enxergamos a missão de ajudar a desenvolver o ambiente de negócios com a conservação. Estamos dedicados a ajudar empresários e empreendedores a construírem negócios saudáveis sustentados na manutenção das riquezas naturais do Brasil. Estamos ajudando com as sinergias, com qualificação, financiamento e até desafios criativos (os chamados “hackathons”).
Ao longo de sua existência, a Fundação Grupo Boticário de Conservação da Natureza aprendeu como pensar estratégias que aliam negócios e conservação. Assim, também está pronta para ocupar de forma consistente um espaço muito importante e inovador na sociedade, cultivando o ecossistema de negócios bons para a natureza. E, se antes provamos que era possível o investimento social privado, agora buscamos caminhos para tornar real a geração de empregos e lucro com a conservação da natureza, ditando uma nova tendência: a economia regenerativa.
Miguel Krigsner, Fundador da Fundação Grupo Boticário e presidente do Conselho de Administração do Grupo Boticário
Fonte: https://www.folha.uol.com.br