..::data e hora::.. 00:00:00

Artigos

Praia dos direitos humanos

Praia dos direitos humanos

José Gregori partiu. Nos deixa o diálogo plural, a construção de pontes e o bom humor como legado de seu método de fazer política

José Gregori pertence a uma linhagem de cidadãos brasileiros que nunca se omitiu. Ainda jovem, ao lado de Marcílio Marques Moreira, participou do gabinete de San Tiago Dantas. Durante o regime militar, instaurado em 1964, compôs —com Margarida Genevois, José Carlos Dias e tantas outras bravas figuras— a Comissão de Justiça e Paz, fundada em 1972, por dom Paulo Evaristo Arns, que se tornaria a principal trincheira de resistência à violência e ao arbítrio impostos pelo governo de exceção.

Ao lado de Maria Helena, sua companheira de vida e também militante da democracia e dos direitos humanos, conspirou civicamente para a redemocratização do país. Participou da articulação da Carta aos Brasileiros, lida por Goffredo da Silva Telles, em 11 de agosto de 1977, que deu início ao processo de transição.

Na casa dos Gregori, sempre aberta a conversas pluralistas sobre a República, foram dados os primeiros passos da campanha das Diretas Já. Sindicalistas e banqueiros, intelectuais e políticos das mais distintas estirpes, sempre encontraram na ampla e confortável sala de Maria Helena e Zé Gregori espaço para a construção de convergências a favor da democracia e dos direitos humanos. Ali, era a praia dos direitos humanos.

A percepção de que o fim do regime militar não daria início a um regime que respeitaria os direitos humanos, especialmente dos mais pretos e mais pobres, levou à formação de mais uma agremiação, agora em torno dos senadores Severo Gomes e Teotônio Vilela (que viria dar nome à Comissão depois de morto em 1983), vislumbrada e impulsionada pelo incansável Paulo Sérgio Pinheiro. A violência policial e as condições cruéis e degradantes das instituições fechadas seriam o objeto central da nova comissão.

Como homem de governo, Gregori não abandonou seu compromisso com os direitos humanos. Novamente em parceria com Paulo Sérgio Pinheiro, transformou os direitos humanos em política de Estado, por meio do primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos, de 1996, construído de forma participativa, seguindo a cartilha de Franco Montoro. Essa iniciativa seria posteriormente fortalecida pela atuação comprometida de Paulo Vannuchi, outro frequentador da praia dos direitos humanos, já no governo Lula.

Também contaram com o apoio e a mão firme de José Gregori a criação da Comissão de Mortos e Desaparecidos, de 1995, a Comissão de Anistia, de 2002, e, finalmente, da Comissão Nacional da Verdade, de 2011.

Importa destacar que nesse período o Brasil assumiu paulatinamente uma posição de protagonismo no debate multilateral em temas sobre os quais era visto até então com muita suspeita. Clima, direitos humanos, mulheres, moradia ou discriminação racial foram objeto de diversas conferencias globais promovidas pelas Nações Unidas, com ampla participação de uma nova sociedade civil globalizada, mobilizada para o reconhecimento e a expansão dos direitos para setores vulneráveis e historicamente excluídos.

Quando essa grande onda de emancipação e democratização —com suas imperfeições e idiossincrasias— passou a ser ameaçada pelo ressentimento do populismo autoritário, foi mais uma vez na praia dos direitos humanos, sob a sombra desse velho jatobá chamado Zé Gregori, que se reconstruíram alianças, esgarçadas pelo impeachment de Dilma Rousseff, como a Comissão Arns —concebida para defender a democracia e os direitos humanos.

Além dos princípios, Gregori nos deixa o diálogo plural, a construção de pontes e o bom humor como legado de seu método de fazer política.

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP

Fonte: https://www.folha.uol.com.br/