Nossos congressistas e seus partidos políticos, com as bênçãos do Supremo Tribunal Federal (STF), embolsaram R$ 50 bilhões do deficitário Orçamento federal de 2022 para se refestelar nas próximas eleições: R$ 26 bilhões em emendas parlamentares individuais e de bancada, R$ 16,5 bilhões em emendas secretas do relator do Orçamento, R$ 4,9 bilhões do fundo eleitoral e R$ 2,6 bilhões do fundo partidário. É uma megafortuna, retirada dos impostos que pagamos para nunca termos serviços públicos decentes, que corresponde a cerca de US$ 10 bilhões.
Com essa fortuna surrupiada dos cofres da União, os eternos representantes do povo procuram se reeleger na base do escancarado abuso do poder econômico, teoricamente vedado pelas leis eleitorais. Os R$ 50 bilhões se prestam, em primeiro lugar, a dar um upgrade nas fortunas dos próprios parlamentares e o resto, o troco, para contratar fabulosos marqueteiros e entupir de dinheiro os cabos eleitorais, influencers, blogueiros, rappers, dirigentes das sociedades de bairro, prefeitos, vereadores e toda espécie de gente que gravita em torno dessa caterva fisiológica que mantém nosso atraso social, político e econômico.
Apenas para lembrar: a campanha eleitoral do presidente da França, Emmanuel Macron, em 2017, custou € 14 milhões, ou seja, pouco mais de R$ 70 milhões, correspondente a 1,4% do valor do nosso fundo eleitoral, de quase R$ 5 bilhões. A propósito, nossos parlamentares não desejam que seus partidos tenham candidato próprio à Presidência, pois querem “economizar” todos os R$ 50 bilhões para suas reeleições, uma vez que apoiarão infalivelmente o próximo presidente, sob a firme liderança do Centrão, qualquer que seja ele, faça sol, faça chuva.
E a cidadania? Como reage diante desse monstruoso assalto ao Erário? E as entidades da sociedade civil organizada que, no passado recentíssimo, levaram o povo às ruas para condenar a corrupção, a gastança desenfreada do Orçamento e o desperdício completo dos recursos públicos? Onde estão?
Nossa atual passividade diante dessa pantagruélica apropriação privada de recursos públicos, num país com 50 milhões de pessoas passando fome, lembra o clássico “Discurso sobre a servidão voluntária”, de Étienne de La Boétie, no século XVI. Como lembra o jovem filósofo, amigo de Montaigne, aceitamos voluntariamente a situação de domínio dos bandidos no poder desprezando, pela inação conformista, a liberdade que temos para derrotá-los e bani-los.
O povo brasileiro e suas mídias e redes sociais vivem uma servidão voluntária. Somos nós mesmos que aceitamos, pelo imobilismo, essa caterva de políticos profissionais que nada mais fazem do que votar leis em favor do próprio bolso. La Boétie, há 500 anos, já demonstrava que podemos resistir a essa opressão sem recorrer à violência. Por isso tudo, é imprescindível que nos organizemos para exigir, mediante plebiscito, o fim da reeleição para qualquer cargo eletivo, a adoção do voto distrital, a apresentação de candidaturas independentes, o fim das emendas parlamentares ao Orçamento, a eliminação do fundo eleitoral e do fundo partidário, a investidura dos ministros do Supremo por antiguidade.
Se não nos mobilizarmos nas ruas, na imprensa, nas redes sociais, continuaremos a consentir, pela nossa voluntária servidão, com o domínio do país por essas aves de rapina, esses inqualificáveis políticos profissionais que nos infelicitam desde que a Carta de 1988 constitucionalizou nosso secular patrimonialismo representado pela promiscuidade absoluta dos recursos públicos e privados.
Modesto Carvalhosa é advogado
Fonte: https://oglobo.globo.com/