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Política sem o fígado

Política sem o fígado

Os últimos dias foram marcados por lances em que a política foi posta de lado, e o fígado das principais autoridades do país ditou as manobras e as decisões, com graves consequências para as contas públicas e, consequentemente, para a vida dos brasileiros. É preciso que todos os lados parem de secretar tanta bile e voltem a agir com racionalidade. Não é viável mergulhar o país um ano e meio num impasse absoluto, que impeça o avanço de toda e qualquer iniciativa do Executivo.

Lula foi eleito democraticamente pela maioria da população para implementar uma determinada agenda. Depois de eleito e empossado, transformou essa plataforma em medidas que levaram à PEC da Transição e ao arcabouço fiscal, ambos aprovados pela Câmara e pelo Senado. A primeira aumentou bastante os gastos, sobretudo com programas sociais. O segundo estabeleceu metas fiscais ambiciosas, com um mecanismo que desde sempre foi considerado frágil pelos especialistas, por depender demais da receita.

Agora, estamos numa situação em que o primeiro momento de gastança cobra um preço no Orçamento pressionado. O Congresso manda ao governo um recado de que não há mais espaço para elevar despesas — isso apesar de criar novos gastos a cada dia. Mas só isso não basta: como parceiros na aprovação da PEC da bonança e do arcabouço, deputados e senadores têm responsabilidade conjunta para fazer com que a meta fiscal seja cumprida.

O caminho para sair do impasse não pode ser sempre recorrer ao Supremo Tribunal Federal, já que não é papel institucional do Judiciário arbitrar rinhas entre os outros dois Poderes. Além de denotar total incapacidade de resolver seus problemas na política, essa dependência do governo em relação ao STF não parece sustentável no longo prazo, já que os próprios ministros da Corte demonstram incômodo com o papel de VAR da política.

Por fim, a consequência mais óbvia desse expediente será que Câmara e Senado dobrem a aposta e passem a derrubar medidas de Lula em série, a começar pela Medida Provisória que eleva tributos sobre uma série de títulos e debêntures, já editada como um band-aid para tapar o buraco deixado pelos recuos iniciais na alta do IOF.

Não há saída efetiva nem segura para o país que não passe pela negociação política e pela compreensão republicana de que, por mais hipertrofiado que o governo esteja em suas atribuições e por mais afinados que estejam os presidentes das duas Casas do Congresso, não é seu papel emparedá-lo indefinidamente e mergulhar o país numa crise fiscal e de confiança. Isso num momento de extrema instabilidade econômica e política no mundo, mergulhado em guerras e na eterna ameaça de disputa tarifária entre as grandes potências.

Lula tem de entender que sua coordenação política perdeu a interlocução com a base que ele montou, junção esquizofrênica de siglas que não escondem a torcida por vê-lo pelas costas em 2026. Ou ele desiste dessas legendas e muda a configuração da Esplanada para dar os ministérios a quem efetivamente o apoia, correndo o risco de perder definitivamente o Parlamento, ou será necessário pôr para negociar quem tenha o mínimo de ascendência sobre os comandos da Câmara e do Senado e não fique sabendo das votações pelas redes sociais.

Alcolumbre e Motta não podem continuar fazendo das cadeiras que ocupam um bunker para atender a toda sorte de lobby, de costas para a opinião pública, fazendo chantagem aberta pelo atendimento de seus pleitos, quase sempre alheios aos interesses do conjunto da sociedade.

Se cada lado continuar ignorando as ligações do outro e investindo no discurso divisivo de pobres contra ricos, o Brasil terá um ano e meio de escaramuças e chegará à eleição não só mais polarizado, mas quebrado. Não parece ser um horizonte que interesse a qualquer dos lados, a não ser que o fígado continue a ser o órgão dominante na tomada das grandes decisões nacionais.

Vera Magalhães, jornalista

Fonte: https://oglobo.globo.com/