Não há nada mais raro hoje em dia do que um espírito independente. Para onde quer que olhemos, só se veem cheerleaders de político.
É uma saída mais fácil: buscar no grupo sua identidade, e defender seu time contra o adversário —esteja ele certo ou errado. Ou melhor: mesmo quando ele estiver errado, dar um jeito de torcer as palavras para que ele pareça certo.
Esse é também o caminho do sucesso: quem é bom nesse jogo pode ter certeza de encontrar audiência e aplausos de uma metade, e o ódio da outra, o que também é uma forma de atenção e dá status.
O modelo mental intuitivo, que muita gente tem a respeito do eleitor, imagina-o comparando os diversos candidatos, buscando suas posições em diversos assuntos e selecionando aquele que mais se aproxima de suas próprias crenças.
A realidade, contudo, é quase o oposto disso: o eleitor tem um político de quem ele gosta e muda suas próprias posições em diversas áreas para melhor se adequar ao que esse líder propõe. (A esse respeito, recomendo o livro “Democracy for Realists”, de Christopher Achen e Larry Bartels, 408 págs., Princeton University Press).
Somos quase que programados para ser assim. O ser humano se distingue dos outros animais justamente por formar grandes coalizões entre indivíduos que não são parentes sanguíneos. Para isso, utilizamos símbolos e palavras que designam pertencimento a um mesmo grupo. E o grupo tem seus líderes, que devem ser defendidos contra o odioso inimigo externo.
Mas essa adaptação evolutiva humana está, agora, colocando em risco nossas instituições democráticas e liberais. Isso porque o ambiente em que estamos inseridos mudou: antes éramos quase todos espectadores passivos de poucas fontes. Os movimentos sectários eram limitados.
Hoje, não só escolhemos um cardápio ilimitado de fontes como também somos emissores de informação: podemos nos afastar e nos odiar até o ponto de ruptura.
Formar um posicionamento próprio, imparcial, sempre foi mais difícil do que apenas se deixar levar pela manada. Da mesma forma que chegar ao conhecimento objetivo —via método científico— é mais difícil do que se deixar levar por impressões pré-concebidas. É quase antinatural.
Ou o controle vem de fora, partindo de uma instância mais poderosa que consegue limitar nossa ação, ou tem que vir de dentro. Pela própria natureza fluida da tecnologia e pelo nosso apreço à liberdade de pensamento como um valor fundacional, ela não virá de fora. A regulação pode dar conta de alguns abusos mais graves, mas não resolverá o problema da polarização.
No passado, uma minoria de indivíduos mais bem formados alimentava o restante com uma dieta informacional vinda de cima. O sonho da regulação é também o sonho de que essa minoria possa voltar a falar sem ser frontalmente questionada. Não vai acontecer. Os problemas advindos do poder dos indivíduos dependerá de eles crescerem também em virtude.
Falar em virtude parece um pouco idealista demais. Mas é importante lembrar que não apenas os teóricos da política normativa —como Platão, Aristóteles e toda a tradição medieval— como o próprio Maquiavel, que inaugurou a visão da política como ela é, jamais abriram mão da distinção entre um povo virtuoso e um corrompido.
O povo corrompido logo perde sua liberdade, seja para o conquistador externo ou para o tirano interno. Como desenvolver essa virtude não em alguns poucos, mas na quase totalidade da população, quando tendências fortes de nossa natureza empurram na direção contrária, é o grande desafio das democracias liberais. Essa deveria ser nossa “torcida”; e os que buscam miná-la de ambos os lados, nossos inimigos.
Joel Pinheiro da Fonseca, economista e bacharel em filosofia brasileiro nascido no Reino Unido
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/joel-pinheiro-da-fonseca