Em mais um revés para o já combalido Estatuto do Desarmamento, a Câmara aprovou na quarta-feira um Projeto de Lei que permite a compra de armas por quem é investigado ou condenado por certos crimes, desde que o caso não tenha transitado em julgado. Na tentativa de tornar a proposta descabida mais aceitável, os deputados mantiveram a proibição para homicídios dolosos, crimes hediondos, contra a dignidade sexual, feminicídios, contra o patrimônio com emprego da violência ou contra vítimas sob medida protetiva. Mas isso não resolve. Acusados de crimes como corrupção, delitos cibernéticos e golpe de Estado poderão comprar armas normalmente.
Não é a única insensatez do texto, que reflete posições defendidas pela Frente Parlamentar de Segurança Pública, conhecida como bancada da bala. Ele abre prazo de um ano para regularizar armas consideradas ilegais desde o Estatuto do Desarmamento (o prazo oficial expirou em 31 de dezembro de 2008). Ainda acaba com a necessidade de declarar uma razão que justifique o pedido de registro e aumenta de três para cinco anos sua validade.
Não houve grandes dificuldades para o projeto avançar na Câmara. Ele não enfrentou resistência nem da base do governo. Depois de incluída no texto a lista de condenações para as quais a compra continuaria proibida (no projeto original nem isso havia), os deputados selaram um acordo para votação simbólica. É verdade que, segundo o deputado Alencar Santana (PT-SP), não há compromisso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em sancionar o projeto. Por que aprová-lo então?
Vai-se desmontando aos poucos a anunciada política de desarmamento do governo Lula. Ao assumir em 2023, ele revogou acertadamente decretos da gestão Jair Bolsonaro que facilitavam a compra, a posse e o porte de armas e munições. Apesar disso, pelas beiradas vai-se minando o Estatuto do Desarmamento, sancionado por Lula em 2003.
Paralelamente, o governo age para afrouxar normas que ele mesmo criara. Um exemplo é a proibição de clubes de tiro a menos de 1 quilômetro de escolas. Pressionado pelos parlamentares, que ameaçavam derrubar a restrição, o governo refez as regras. Permitiu que os clubes já existentes passem a funcionar de segunda a sexta-feira das 18h às 22h e livremente nos fins de semana, para não haver conflito com o horário escolar. Novos clubes terão de respeitar a distância de 1 quilômetro. Também será permitida a compra de carabinas, hoje de uso restrito, por colecionadores, atiradores desportivos e caçadores (CACs).
O governo deveria ser o primeiro a defender o Estatuto do Desarmamento e as normas que dificultam o acesso a armas e munições. É um contrassenso, além de um retrocesso, que condenados por crimes — por qualquer crime — sejam autorizados a se armar. Armas provocam tragédias que comovem o Brasil diariamente. Nesta semana, uma médica da Marinha morreu depois de atingida por uma bala perdida dentro de um hospital, situação inimaginável. O Senado, para onde voltará o projeto, deveria rejeitá-lo. Se passar, Lula deveria vetá-lo. Nada justifica aumentar a quantidade de armas no país. Todas as medidas deveriam ser tomadas na direção contrária: reduzir o arsenal que cresceu assustadoramente no governo passado.
Editorial do jornal O Globo de 13.12.2024
Fonte: https://oglobo.globo.com/