A alegoria do “bode na sala” ajuda a explicar o Brasil de 2023. Com a vitória de Jair Bolsonaro em 2018, o ambiente passou a ser animado pelo presidente num clima de guerra. A pulsão de destruição foi seu dínamo. Mas, admita-se: a situação já não vinha bem, a atmosfera não era exatamente saudável. Bolsonaro foi antes efeito do desconcerto, não seu vingador.
Com ele, a intranquilidade sentou-se à mesa. Loucura muita, generosidade pouca, força ostensiva, intimidação, manipulação de símbolos nacionais; pequenas, mas agudas, provocações. Além, é claro, da vergonha alheia. Tudo está na História.
Sua derrota eleitoral, a consolidação do governo Lula e a inelegibilidade pronunciada pelo TSE aquietam o ambiente institucional. Mesmo parte de seus eleitores há de admitir certo alívio. Mas será um erro se a sociedade morar nesse conforto ilusório, insistindo em “matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem”. Há outros dragões diante de São Jorge.
Um mal-estar, conhecido e familiar, nunca se foi. A retirada de Jair Bolsonaro da sala resolve apenas o que havia de mais dramático e urgente: a proteção à democracia e restauração de alguma racionalidade. Uma penca de problemas, no entanto, ainda nos rodeia.
Os defeitos do sistema político requerem senso crítico e disposição para mudança. Estão em vários campos, não basta fixar o olhar no Executivo e ignorar sombras nos demais Poderes.
No Judiciário, o protagonismo político preocupa. A Justiça Eleitoral — ministros Barroso, Fachin e Moraes, cada um a seu tempo — fez enfrentamentos importantes que, na lei, frearam impulsos golpistas. Agora, novas leis precisam delimitar espaços e estabelecer freios. Até mesmo para os juízes.
A experiência ensina que o país não pode depender de heróis togados, menos ainda de justiceiros. O bom funcionamento do sistema requer a grande Política e a efetividade das instituições, não presunção ou altivez individual.
É fato que a politização da Justiça principia na omissão parlamentar sobre temas sensíveis à opinião pública. Também a necessária, mas reiterada, judicialização de conflitos — que deveriam se resolver na luta por alteração na correlação de forças sociais — peca por excesso. São apenas alguns problemas do Parlamento. Há outros.
Preexistente ao bode, o maior desarranjo da sala continua sendo o tipo de relação despolitizada e pouco republicana entre Executivo e Legislativo. O tradicional patrimonialismo em suas vertentes clientelista e corporativista. O fisiologismo.
Se antes o Executivo impunha sua agenda aos parlamentares inibindo recursos do Orçamento, atualmente, os vetores mudaram. Com a fragilidade de Bolsonaro, a coação atravessou a Praça dos Três Poderes. Seus botões estão nas mãos das maiorias parlamentares, acionados por interesses particularistas, são quase sempre estranhos às questões do Estado e do bem-estar geral.
As barganhas, típicas do jogo parlamentar, conduzidas pelo fisiologismo aviltam a política. Cargos e verbas ganham centralidade e desarranjam políticas públicas. O paroquialismo transforma o deputado em vereador federal, apequena sua função. Sem liberação de verbas, não há votação. A derrota no painel paira como vingança ou ameaça. Sem ministério de orçamento polpudo, não há concórdia. Escorregões verbais de ministros ativam tergiversações. Parlamentares reagem docemente indignados e obstruem tudo.
Argumenta-se ser o mesmo Parlamento que aprovou reformas como a tributária. Verdade. Em grande grau, elas se viabilizam pelo alinhamento de interesses indiferentes a seus méritos. Bismarck diria que se vive melhor quando não se sabe como as reformas e as salsichas são feitas.
Com o bode retirado da sala, a sociedade respira e sorri. Isso é bom. Mas deveria voltar a se preocupar com o patrimonialismo confortavelmente acomodado no sofá.
Carlos Melo, cientista político, é professor senior fellow do Insper
Fonte: https://oglobo.globo.com/opiniao/artigos/coluna/2023/08/patrimonialismo-no-sofa-da-sala.ghtml