A palavra pacto voltou ao noticiário. Sempre que isso ocorre é sinal de que o governo está zonzo. Alega-se que Jair Bolsonaro deseja conciliação e entendimento. Quer envolver as cúpulas dos três Poderes na guerra contra a Covid-19. Arrisca-se a fazer papel de bobo quem acreditar na teatralidade de uma articulação que reúne num mesmo pacote Bolsonaro e os vocábulos conciliação e entendimento. São coisas inconciliáveis.
O teatro da concórdia está marcado para esta quarta-feira, no Palácio da Alvorada. Encabeçam a lista de convidados Luiz Fux, Rodrigo Pacheco e Arthur Lira —presidentes do Supremo, do Senado e da Câmara. Os convites foram formulados na semana passada, nas pegadas da queda de Bolsonaro no Datafolha. Desde então, o presidente dedicou-se em tempo integral ao único setor do seu governo que funciona com perfeição: a usina de crises.
Bolsonaro atacou governadores. Comparou toque de recolher de gestores estaduais em pânico com a lotação das UTIs a um estado de sítio baixado por “tiranetes” e “tiranos”. Avisou que “o caos vem aí”. Ameaçou chamar o “meu exército” se continuarem “esticando a corda”. Declarou que o general Eduardo Pazuello fez “um trabalho extraordinário no Ministério da Saúde”.
Nesta segunda-feira, antevéspera da sessão de teatro no Alvorada, Bolsonaro disse que o Brasil “dá exemplo” na pandemia. Declarou que o governo faz um trabalho “excepcional” na distribuição de vacinas. E deixou claro que não tem a mais remota intenção de se reposicionar em cena. “Devo mudar o meu discurso, me tornar mais maleável?”, ele perguntou. “Se me convencerem do contrário, eu faço. Mas não me convenceram ainda. Devemos lutar contra o vírus, não contra o presidente”.
Ou seja: o pacto ensaiado pelo Planalto é mais ou menos como o diálogo travado entre um cego e um grupo de surdos, na solidão de uma gruta chamada impasse. A hipotética tentativa de entendimento surtirá sobre a “gripezinha” que está prestes a matar 300 mil brasileiros o mesmo efeito da cloroquina na cura da Covid.
Ninguém se lembra, mas a primeira vez que Bolsonaro falou em “pacto” foi no discurso de posse, pronunciado no Congresso em 1º de janeiro de 2019. Em timbre genérico Bolsonaro propôs um “pacto nacional entre a sociedade e os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, na busca de novos caminhos para o Brasil”. Ele reafirmou seu “compromisso de construir uma sociedade sem discriminação ou divisão”.
O apreço de Bolsonaro pelo pacto durou a distância que separa o prédio do Congresso e a sede do Executivo. Minutos depois, em novo discurso, dessa vez no Parlatório do Planalto, Bolsonaro fez uma proclamação belicosa: “O Brasil começa a se libertar do socialismo e do politicamente correto”, ele afirmou, inaugurando uma mania que caracteriza a sua Presidência: a mania de criar fantasmas e depois se assustar com eles.
O pacto de que Bolsonaro precisa já existe. E não depende dos chefes de outros poderes para ser executado. Chama-se Constituição Federal. O trecho que se aplica à pandemia está escrito no artigo 196. Diz o seguinte: “A saúde é direito de todos e dever do Estado...” Na guerra contra o vírus, Bolsonaro fez o pior o melhor que pôde.
O negacionismo crônico do presidente retarda o único encontro que interessa no momento. O encontro da seringa com o braço dos brasileiros. Fora disso, qualquer ideia de pacto ou conciliação não resiste a meia dúzia de posts nas redes sociais ou de declarações de Bolsonaro no cercadinho dos devotos. Todos já sabem o que Bolsonaro precisa fazer: presidir a crise sanitária. Ele avisa que não está convencido de que deva alterar seus pontos de vista.
É como se o presidente intimasse o Brasil a decidir que país deseja ser. Se o teatro do Alvorada não resultar numa reação efetiva à desconversa de Bolsonaro, bastará a qualquer parlamentar ou autoridade permanecer de cócoras em Brasília para ser considerada uma pessoa de grande altivez.
Josias de Souza, jornalista
Fonte: https://noticias.uol.com.br