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Os sinais de regressão

Os sinais de regressão

No fim deste mês, lembraremos os 60 anos da ditadura militar. O tempo passou velozmente. Ainda terei a chance de recordar aqueles anos em que a ideia de resistência iluminava nossos olhos e eletrizava nossos corpos jovens.

Quem diria que comecei a semana escrevendo sobre os problemas de um país polarizado? Usei um verso de Yeats que fala da desolação da realidade para descrever o que restou de tanto som e fúria.

Na verdade, tenho de confessar que me preocupa algo ainda pior: a sensação de que, em alguns campos, corremos o perigo de regressão.

Como explicar a notícia de que o assassino de Chico Mendes dirigia o PL numa pequena cidade do Pará e se tornou candidato a vereador com o nome de Pastor Daniel?

Ainda me lembro daquela véspera de Natal quando viajei às pressas para o Acre e, já no Aeroporto de Rio Branco, enfrentava a hostilidade de fazendeiros, que nos cercaram, raivosos, a mim e a Roberto Smeraldi. Percebi como era forte a posição que sobrevive até hoje, uma espécie de ânsia de derrubar a floresta, matar seus defensores e expulsar os povos ancestrais de suas terras. Mais tarde em Anapu, no enterro de Dorothy Stang, confirmei essa sensação, reforçada recentemente com o assassinato de Dom Phillips e Bruno Pereira no Vale do Javari.

Nem é preciso o drama dessas mortes. Basta viajar pela Amazônia e sentir na atmosfera a hostilidade às vezes colorida por bandeiras do Brasil nas janelas e porteiras. Na Amazônia há sempre o perigo de voltarmos atrás, ao momento anterior ao sacrifício de Chico Mendes. Mas a ideia de regressão se estende a Brasília.

É só examinar os temas discutidos na semana. Em primeiro lugar, uma isenção ampliada de impostos para igrejas. No momento em que há grande esforço para arrecadar, as igrejas deixarão de pagar impostos por bens e serviços, assim como as entidades de caridade ligadas a ela. Inexplicável uma decisão desse tipo num país não dirigido por uma teocracia. Religiosos são influentes também nos Estados Unidos, onde têm igualmente grande peso eleitoral. No entanto os Estados Unidos cobram impostos e às vezes usam o próprio Fisco para punir charlatães religiosos.

Como se não bastasse tudo isso, deputados preparam uma lei para blindar congressistas não só da presença da PF em seus gabinetes, mas também das próprias investigações. Em seu delírio, querem que todo procedimento policial contra eles só evolua se ganhar permissão do próprio Congresso. Em síntese, querem criar um cercadinho onde a lei não entra, exceto com sua autorização. Seria uma jabuticaba de grande repercussão internacional.

Por falar na fruta, na mesma semana o STF autorizou a revisão dos processos de leniência assinados por empresas acusadas de corrupção. Não querem pagar as multas determinadas no acordo. Tudo bem, exceto pelo fato de o STF rever os acordos por iniciativa de partidos de esquerda. O único país do mundo em que partidos de esquerda se preocupam com o caixa de empresas corruptas, mesmo sabendo que parte do dinheiro é destinado a fundos de pensão.

Usei o verso de Yeats num artigo porque ele deve se referir à desolação da realidade quando declinam as religiões e também suas expressões seculares, como as doutrinas políticas de salvação do mundo.

No tempo da ditadura, acreditávamos numa revolução que mudaria completamente tudo, da produção aos costumes. Éramos a expressão enviesada do cristianismo, acreditávamos num paraíso na Terra com o fim da exploração do homem pelo homem. Primeiro, caíram as religiões; depois, suas traduções políticas.

Mas tudo isso é um balanço bem mais delicado por fazer. Na realidade, transitamos para um país polarizado onde nunca estaremos a salvo de uma regressão.

Fernando Gabeira, jornalista

Fonte: https://oglobo.globo.com/