Em outubro de 2022 os brasileiros têm um embate decisivo contra a cartilha fascista de Jair Bolsonaro. A eleição brasileira irá reeditar um antagonismo histórico, registrado em 12 de outubro de 1936. O auditório da Universidade de Salamanca (Espanha) foi palco de um dos mais memoráveis enfrentamentos do fascismo no mundo. Era a gênese da Guerra Espanhola (1936-1939) que alavancava o franquismo e seus métodos autoritários. A atmosfera por lá era idêntica ao atual cenário brasileiro: intolerância, ódio, morte e barbárie.
De um lado estava Dom Miguel de Unamuno, romancista, ensaísta, dramaturgo, poeta, filósofo e reitor de umas das primeiras universidades europeias, a de Salamanca. Do outro, a face mais assustadora, tirânica e tosca do franquismo, o general José Millán-Astray, fundador da Legião Espanhola. Até mesmo entre os oficiais o militar espanhol se destacava como uma referência do horror. Saíra de uma guerra no norte da África sem o braço esquerdo e sem o olho direito. Chamava a si próprio de “Glorioso mutilado”. As amputações, entretanto, extrapolavam as perdas físicas.
Na beligerante Espanha do começo do século, Unamuno disparou o antídoto antifascista enaltecendo a vida e o conhecimento. O reitor reagiu indignado diante da intimidação: “Todos vocês esperam as minhas palavras. Vocês me conhecem e sabem que sou incapaz de ficar em silêncio. Às vezes o silêncio é mentir. Pois o silêncio pode ser interpretado como concordância”. Complementou: “Este é o templo da inteligência, e eu sou seu sumo sacerdote…Dói-me pensar que o general Millán-Astray deva ditar as normas de psicologia das massas. Um aleijado sem a grandeza de Cervantes tende a buscar consolo calamitoso provocando mutilação à sua volta. O general Millán-Astray gostaria de recriar a Espanha, uma criação negativa à sua própria imagem e semelhança; por essa razão, deseja ver a Espanha aleijada”.
O improviso emocionado em defesa da democracia contra a tirania e da civilização contra o caos, foi interrompido colericamente por Millán-Astray que vociferava: “Muera la inteligência! Viva la muerte!” O guarda-costas de Millán Astray apontou a metralhadora para a cabeça de Unamuno. O professor reagiu: “É o senhor que profana este recinto sagrado. O senhor vencerá, porque tem força bruta mais que suficiente. Mas não convencerá. Pois para convencer precisará do que lhe falta: a razão e o direito em sua luta. Considero inútil exortar o senhor a pensar na Espanha”.
O fascismo, desde então, gravita sobre a humanidade com uma potencialidade fantasmagórica, ameaçando lacerar as democracias pelo mundo. A última onda arrastou para essa atrofia institucional os Estados Unidos, a Hungria, o Brasil e outros países. Na América Latina várias nações já exorcizaram o aleijão autoritário em suas eleições recentes. Aqui já são 3 anos de bravatas fascistas que estropiaram o Brasil e mutilaram as instituições, o Estado Democrático de Direito, a economia, a política externa, o meio ambiente, a imagem brasileira, os trabalhadores e a sociedade de maneira geral. O pleito de outubro está muito além da dicotomia rivalizando esquerda, direita, progressistas e liberais.
É a batalha da luz contra as trevas, do conhecimento contra a ignorância, da ciência contra a crença, da verdade contra a mentira, da tolerância contra o ódio, da vida contra a morte, da modernidade contra o retrocesso, da inclusão contra a exclusão, do altruísmo contra o preconceito, da integração contra a desintegração, da paz contra o conflito, em última instância da democracia contra a tirania. Opções muito simples que separam o bem do mal. São os ecos de Salamanca.
O rastro da mutilação institucional e da morte do bolsonarismo, inspirado no franquismo, está espalhado no Brasil e monopoliza a retórica dos ignorantes. Na pandemia já são mais de 665 mil mortos diante da incúria e atraso na compra de imunizantes. Um dos piores desempenhos mundiais. Além de atrasar intencionalmente a aquisição das vacinas, convocou e participou de aglomerações, sabotou a ciência, conspirou contra o uso de máscaras, deixou Manaus ser asfixiada sem oxigênio, foi aconselhado por um ministério paraestatal e prescreveu, ilegalmente, medicamentos inúteis. A defesa reiterada e intimidade com os grupos de extermínio da milícia, a apologia a ditadores sanguinários, a insistência em armar a população e a pulsão de morte complementam a trajetória macabra do Millan-Astray tupiniquim. “Viva a morte”. As ameaças contra a democracia integram a rotina da cartilha da ignorância. “Morte à inteligência”.
O golpismo passou por várias modulações, mas sempre foi um golpe fardado ao fracasso, arreganhos intimidatórios malogrados. Em plena crise da Covid19, no mês de maio de 2020, a quartelada desinibiu-se no ato público em frente ao QG do Exército pedindo a volta do AI-5, intervenção militar, o fechamento do Congresso e do STF. “Nós não queremos negociar nada. Nós queremos ação pelo Brasil”, regurgitou o capitão. “Chega da velha política. Estou aqui porque acredito em vocês e vocês estão aqui porque acreditam no Brasil”. Meses depois a velha política foi alojada no coração do governo. Presidiários como Roberto Jefferson e Valdemar da Costa Neto, dois integrantes da “nova política” de Bolsonaro, sentenciados por corrupção, passaram a dar as cartas.
Bolsonaro se casou no altar do crime com o PL de Costa Neto para disputar a eleição que sempre ameaça. A reiteração das bravatas denota que a campanha naufraga. Com as pesquisas mostrando que o radicalismo e a boçalidade espantam os moderados, Bolsonaro está tão desnorteado que já critica aliados: “O maluco levanta uma faixa lá ‘AI-5’. Existe AI-5? Você tem que ter pena do cara que levanta a faixa do AI-5”. O próprio filho, “maluco”, defendeu a volta do Ato Institucional 5 duas vezes.
Dias depois da primeira ameaça golpista, o capitão arremeteu novamente: “Temos as Forças Armadas ao lado do povo, pela lei, pela ordem, pela democracia, pela liberdade. Nós queremos o melhor para o nosso país… Chega de interferência. Não vamos admitir mais interferência. Acabou a paciência… Peço a Deus que não tenhamos problemas nessa semana. Porque chegamos no limite, não tem mais conversa. Daqui para frente, não só exigiremos, faremos cumprir a Constituição”. Na semana seguinte insistiu: “Raramente existe uma faixa pedindo AI-5, mas não sei por que ministro do Supremo fica preocupado com isso. Não existe AI-5. É falar de boitatá, bicho papão, mula sem cabeça”. Com o fracasso das tentativas de quarteladas o eunuco golpista abriu as pernas para centrão a fim de blindar os pedidos de impeachment e arrombou os cofres públicos para o bando. Em troca seguiu entoando a melodia disruptiva. A índole fascista reviveu mais forte em 2021, na tentativa de ressuscitar o voto impresso. Mais uma vez, o tiro saiu pela culatra.
A comissão especial da Câmara dos Deputados que analisava o voto impresso abateu a pretensão por 23 votos a 11. Mais que o dobro dos votos dos obscurantistas. Arthur Lira que comanda o acampamento de mercenários engordados pelo orçamento secreto, submeteu a proposta a uma segunda batalha no plenário da Câmara dos Deputados. Um estratagema esdrúxulo para o que já estava ferido de morte. No plenário o vexame foi renovado. A PEC do retrocesso obteve 218 votos contrários e 229 votos favoráveis. Bolsonaro sofreu sua mais acachapante derrota em terreno aliado, já que vem subornando o parlamento e o apoio, mesmo remunerado, foi insuficiente.
A tese do voto impresso repõe o capitão ao seu tempo mental, a idade média. De armadura, elmo e lança esporeia, sem sucesso, contra a modernidade irrefreável. Após falar em fraudes eleitorais, Bolsonaro fez várias “lives” em que prometia apresentar provas sobre fragilidade das urnas eletrônicas. Nunca o fez, exatamente porque não tem. Como todas as notícias falsas que difunde irresponsavelmente, acabou admitindo não ter provas das tolices que profere diariamente.
Antes do voto eletrônico vigoravam as urnas de lona. Com elas a mão humana patrocinou uma infinidade de fraudes eleitorais, como o mapismo, o voto formiguinha, as urnas emprenhadas ou grávidas e o voto carbono. Com os sacos de lona, os atentados à liberdade do voto e à vontade do eleitor eram frequentes. O sistema eletrônico de votação acabou com essa nódoa e, ao longo de 25 anos, se mostrou seguro para garantir eleições limpas.
O voto impresso é a patente dos coronéis, da fraude, da compra de eleitores e das milícias. A fraude saiu do varejo para o atacado. Hoje em dia o maior risco à normalidade das eleições e representatividade está no abuso do poder econômico e no uso desequilibrado ou indevido dos meios de comunicação. O orçamento secreto irá desequilibrar a representação em 2022. Atacar o sistema eleitoral, como faz Bolsonaro e seus cavernícolas desonestos, é um diversionismo para embaçar a incompetência e corrupção entranhadas no desgoverno. O clã Bolsonaro (Jair, Flávio, Carlos e Eduardo), totaliza 76 anos de mandatos, salários públicos e ‘rachadinhas” conferidos pelas urnas eletrônicas.
Que Bolsonaro é mal-intencionado e ignorante até as pesquisas já captaram. Sua estupidez o atira em uma situação única de autoimolação. Nem para tiranete tem talento. Pelas trapalhadas em série caminha para o suicídio político. Sofre derrotas sucessivas no Judiciário e algumas em um Parlamento subjugado. A conflagração rotineira com os demais poderes vai adensando o isolamento político e não agrega eleitores.
Jair Bolsonaro, expelido do Exército por ameaças terroristas de estourar quartéis, sempre recorre a métodos extremistas para tentar atrofiar o Estado Democrático de Direito em busca da autoridade monárquica. Ao convocar manifestações para rupturas institucionais, pregar abertamente a desobediência a decisões judiciais e conspirar contra o funcionamento dos demais Poderes da República, Bolsonaro aposta no aprofundamento da crise e no mergulho cego nas catacumbas do autoritarismo. O desespero golpista é fruto dos inquéritos no rastro do clã, do desempenho eleitoral ruim, do salto na rejeição, da desaprovação da gestão, da erosão da imagem, da ruína econômica (inflação, desemprego, fome, PIB) e da prisão das cavalgaduras que serviram de biombo na afronta aos Poderes. Bolsonaro, no auge do desespero, externou novamente sua preocupação com a cadeia: “Por Deus que está no céu, nunca serei preso”. Mais uma vez está errado.
Quem conspira desde o primeiro dia do mandato contra os Poderes são os Bolsonaro. O capitão preparou, convocou, discursou, chamou ministros e sobrevoou os atos golpistas em 7 de setembro do ano passado. Nada indica que foi um rompante ou um rasgo de desequilíbrio. Os fatos revelaram um planejamento caviloso. A defesa da democracia, disposição ao diálogo são hipocrisias retóricas, desmentidas pelos espasmos golpistas e reincidentes coices de sua cavalaria na democracia. O mais xucro, Daniel Silveira foi condenado a 8 anos e 9 meses de prisão e imediatamente indultado por Bolsonaro. A perda de direitos políticos não é alcançada pelo indulto ao deputado que ataca a democracia. “Poderemos ter outra crise. Poderemos ter eleições conturbadas. Imagine acabarmos as eleições e pairar para um lado, ou para o outro, a suspeição de que elas não foram limpas?”, desabafou aos berros na última semana, quando chegou a cúmulo de processar o ministro que o investiga no STF.
A conspiração contra a democracia tem maquinações recorrentes que almejam o enfraquecimento das instituições, o encorajamento ao confronto, a eternização da polarização, a terceirização de fracassos, o questionamento das regras sagradas da democracia e a disseminação goebeliana da mentira. Elas vão perdendo aderência, mas é o que resta a quem não tem projetos ou realizações para exibir na campanha. É hora de silenciar os ecos de Salamanca com a voz altiva do voto livre, soberano e democrático. Abaixo a ignorância e celebremos a vida. Não seremos uma Nação de gloriosos mutilados como a Espanha franquista.
Weiller Diniz, jornalista
Fonte: https://osdivergentes.com.br