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Orçamento secreto, patrimonialismo 2.0

Orçamento secreto, patrimonialismo 2.0

Poucas horas antes de ser oficialmente escalado para integrar o centro nervoso do governo Lula, um influente petista relatou episódio ocorrido em sua última visita oficial a Portugal. Interessante: o assunto surgiu quando, naquele bate-papo informal com jornalistas, alguém perguntou dos desafios políticos enfrentados pela equipe de transição na montagem do governo, diante da enorme pressão de partidos aliados, e da crescente tensão no Congresso com o julgamento que analisa a constitucionalidade do “orçamento secreto”.

Insatisfeita, uma parcela poderosa do Congresso Nacional percebeu que pode ficar sem o “orçamento secreto” como ele é atualmente, robusto e de transparência questionável, e, ainda, ver o governo eleito negociar espaços relevantes na máquina pública federal com seus adversários nos Estados. Decidiu não ficar só assistindo - quer manter o controle de verbas, espaços no novo governo e influenciar a tramitação da PEC da Transição.

Diante de uma possível derrota no Supremo Tribunal Federal (STF), que retoma a análise nesta quarta-feira da constitucionalidade das emendas de relator ao Orçamento, a cúpula do Congresso se movimenta para tentar preservar pelo menos parte de um instrumento capaz de levar recursos a prefeitos aliados. E o futuro ministro criticava o fato de isso muitas vezes ocorrer abaixo do radar de órgãos de controle e acima de qualquer política pública de longo prazo. Mas, para escapulir da pergunta sobre as dificuldades de acabar de um dia para outro com o bilionário orçamento secreto, ele retomou a conversa sobre sua viagem a Portugal.

Segundo o relato, ele e uma importante autoridade local conversavam sobre como é difícil elevar a qualidade do gasto público em países em que segmentos importantes da classe política carregam há séculos, no DNA e na prática cotidiana, traços marcantes de patrimonialismo. Com esse genótipo, conseguiram se perpetuar nas melhores posições da cadeia alimentar por séculos, o que não demonstram disposição de abandonar.

O patrimonialismo é logo identificado quando se observa uma confusão entre as esferas públicas e privadas. Um caso clássico é o uso de instrumentos e recursos estatais por líderes políticos para a satisfação de suas próprias necessidades pessoais e projetos de poder. A ocupação da máquina por parentes, o nepotismo, é outra prática comum - postos políticos são vistos como meras extensões do foro privado ou, como dizem os teóricos do assunto, o Estado passa a ser encarado como patrimônio.

O intelectual Raymundo Faoro, por exemplo, mostra em seu “Os donos do poder: Formação do Patronato Político Brasileiro” as origens portuguesas dessa espécie de casta no Brasil e como ela tem sua parcela de responsabilidade pela frustração do desenvolvimento da nação. Mas há outros autores fundamentais que tratam do assunto. E existem, também, inúmeros casos práticos contemporâneos que um dia serão estudados por historiadores.

Da teoria à prática. No país de Jair Bolsonaro e do Centrão, o orçamento secreto é justamente a mais impactante inovação no campo da ciência política.

Sob severo risco de enfrentar um processo de impeachment, o atual chefe do Poder Executivo cedeu a gestão de um montante considerável do Orçamento para construir uma base aliada. Conseguiu, dessa forma, uma trincheira na Câmara dos Deputados e no Senado Federal que lhe garantisse abrigo até o fim do mandato. Mas a edificação, assim como o material de péssima qualidade muitas vezes utilizado no asfalto adquirido com recursos das emendas de relator, ruiu como sonrisal sob a chuva.

“Asfalto Sonrisal”, aliás, foi uma expressão utilizada por um futuro ministro ao justificar os motivos pelos quais é contra o orçamento secreto. Em outro exemplo, este ministro citou as máquinas agrícolas e de construção compradas com recursos das emendas e entregues diretamente a pequenas associações de moradores. Em muitos casos, argumentou, essas comunidades não conseguem usar plenamente esses equipamentos. Acabam as alugando para as prefeituras, num vai em vem de contratos difícil de ser monitorado pelos órgãos de controle.

Retomando o bate-papo com jornalistas, o ministro indicado disse não acreditar que isso mudará tão cedo, inclusive pelo que ouviu do seu interlocutor português naquela viagem.

“Nós só melhoramos quando entramos na Comunidade Europeia”, disse o lisboeta, de acordo com o relato, em referência aos rígidos parâmetros exigidos dos países que querem fazer parte do bloco, independentemente de suas tradições e origens. E logo na sequência ele complementou, com ironia: “Mas esta herança nós deixamos para vocês”.

Planejamento e uso eficiente dos escassos recursos é o que se espera de um gestor público. E é possível que o ingresso do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) seja capaz de promover uma mudança cultural de magnitude semelhante com a que ocorreu com Portugal. No atual governo, esse tema recebeu bastante atenção da Casa Civil, do Ministério da Economia e do Itamaraty. Até agora, contudo, tudo indica que tem sido deixado à margem pela equipe de transição. A ideia poderia ser mais bem discutida por aqueles que subirão a rampa do Planalto preocupados com o orçamento secreto e como ele pode perpetuar o DNA patrimonialista em setores da classe política.


Fernando Exman,  jornalista

Fonte: https://valor.globo.com