“O mandatário da República deixa patente seu desconhecimento sobre a diferença entre público e privado
, demostrando mais uma vez traços de caráter graves em um governante: a crueldade e a falta de empatia”. Trecho da carta de Felipe Santa Cruz, presidente da OAB, respondendo às declarações insalubres de Jair Bolsonaro sobre seu pai, Fernando, desaparecido político.
O xeque-mate democrático de Felipe Santa Cruz, atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, expôs Jair Bolsonaro a um nível de caricatura fascista que não apenas encurta o mandato do homem que ocupa o Planalto, tornando-o cada vez mais intragável numa democracia, como eleva o filho de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira ao de figura imprescindível e notável no país hoje. Ao tratar da morte de Fernando, preso e desaparecido político, um dos exterminados por agentes da ditadura que Bolsonaro idolatra, o presidente da República cometeu um evidente crime, não apenas por falsear o fim trágico do militante político, segundo ele morto pelos próprios companheiros do “grupo terrorista” Ação Popular do Rio de Janeiro, e não pelos militares, mas por demonstrar que, mesmo mentindo, insinua saber onde foram parar brasileiros e brasileiras cujos corpos nunca foram encontrados. Não adiantou a patética coletiva do porta-voz da Presidência, Otávio Rego Barros, que, pressionado pelos jornalistas, afirmou que Bolsonaro fez as “considerações” sobre o desaparecimento de Fernando Santa Cruz “com base em informações que obteve com pessoas à época”, durante a ditadura militar.
Felipe, que nunca usou a morte do pai em sua merecida ascensão profissional e política, saindo da OAB do Rio de Janeiro para comandar a Ordem dos Advogados do Brasil, uma das mais representativas entidades de denúncia e combate aos crimes e atrocidades cometidos durante e depois da ditadura, já demonstrou que não vai deixar a crueldade de Bolsonaro cair no vazio. E que não ficará na nota de repúdio da OAB à declaração do presidente da República. O presidente da OAB, que pediu esclarecimentos a Bolsonaro no Supremo, demonstra que, ao dar uma declaração falsa sobre uma vítima da ditadura, o capitão repetiu, com requintes, os elogios ao torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel do Exército e ex-chefe do DOI-CODI do II Exército, um dos órgãos atuantes na repressão política. Ou seja, incorreu, mais uma vez no artigo 287 do Código Penal, que considera crime fazer a apologia da tortura. Agora no exercício da Presidência. “Aí há uma lista de possíveis crimes que ele pode estar incorrendo sim. (A começar pela) falsidade, a dar declaração falsa, provavelmente num arroubo verbal”, diz Felipe Santa Cruz, um dos homens mais serenos e doces que já conheci.
Bolsonaro agiu como uma lâmina sem fio, que cortou duas vezes até sangrar. Primeiro, insinuou que poderia contar a Felipe sobre o destino de seu pai. “Quem é essa OAB?”, começou Bolsonaro, até então referindo-se às ações da entidade no caso do processo relacionado a Adélio Bispo dos Santos, o homem da facada no abdômen do presidente. “Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, conto para ele”, desafiou, sadicamente. “Ele não vai querer ouvir a verdade. Eu conto para ele”, vomitou Mais tarde, num vídeo ao vivo no Facebook – enquanto cortava o cabelo, pasmem -, Bolsonaro disse – evidentemente, sem apresentar qualquer prova – que Fernando Santa Cruz foi morto pelos militantes da Ação Popular, à qual integrava. Segundo essa versão, membros da Ação Popular do Rio de Janeiro teriam estranhado a decisão de Fernando de vir do Recife para se encontrar com a cúpula do grupo, já que ele era um “afiliado menor”, e, por isso, “resolveram sumir com o jovem”. Segundo a Comissão da Verdade, Fernando Santa Cruz foi preso em Copacabana no Rio de Janeiro, em fevereiro de 1974, por um grupo do DOI-CODI. Não voltaria mais. Segundo a comissão, Fernando Santa Cruz “permanece desaparecido, sem que os seus restos mortais tenham sido entregues à sua família”.
Não é a primeira agressão de Bolsonaro à memória do pai de Felipe. Em 2011, em palestra na Universidade Federal Fluminense, o então deputado federal Jair Bolsonaro declarou que Fernando Santa Cruz teria morrido “bêbado” após pular o carnaval, o que iniciou cruzada de Felipe contra Bolsonaro, culminando com um pedido de cassação do deputado por parte da seccional da OAB do Rio de Janeiro, quando a entidade era presidida por Felipe. De lá pra cá, Bolsonaro foi eleito presidente, o que dá a suas declarações um caráter gravíssimo. No Supremo, Marco Aurélio Mello propôs uma solução heterodoxa para evitar falas desse tipo de um presidente: “No mais, apenas criando um aparelho de mordaça”, disse ao blog do jornalista Tales Faria, do UOL. Deixa ele falar, Marco Aurélio. Numa democracia, mesmo a torta em que vivemos, a cada fala repulsiva de Bolsonaro, menor é a chance de que termine o mandato.
Jornalista
Fonte: https://www.brasil247.com