Uma réplica cafona e dourada do Charging Bull, a escultura de bronze que desde o fim dos anos 1980 foi implantada na frente da Bolsa de Nova York, virou alvo de protestos e memes nos últimos dias. Poucas coisas poderiam ser uma síntese mais acabada do momento de completa dissonância cognitiva por que passa o Brasil.
A “obra de arte” (sic) foi “presente” de um economista que se autointitula Tourinho de Ouro. Logo não é presente, mas autopropaganda. Foi paparicada por expoentes do mercado financeiro brasileiro.
O touro, vejam só, é considerado um símbolo de pujança e confiança do mercado em ganhos e altas realizações.
Mas, no momento, os investidores estão fugindo do Brasil, ressabiados pela inflação descontrolada, pelo calote nos precatórios, pelo desemprego recalcitrante e pelo desajuste fiscal deflagrado pelo governo Bolsonaro.
Os mesmos entusiastas que postaram selfies com o touro cafona fazem um spinning job — como nós, jornalistas, chamamos o trabalho de passar em off informações e análises — mostrando os efeitos devastadores que haveria no curto, médio e longo prazos com a aprovação da PEC dos Precatórios, na esperança de que a imprensa faça por eles o trabalho de tentar frear a proposta no Senado.
É graças à condescendência excessiva e à covardia de setores como o empresarial e financeiro com os descalabros de Bolsonaro, não só na área econômica, mas na destruição de toda e qualquer política pública no país, que rumamos sem nenhum freio visível para o estouro da boiada.
Enquanto os mauricinhos de gel e colete de náilon da Faria Lima se congratulam em torno de um símbolo da nossa sabujice, como esse touro, Bolsonaro vai arrebentando com os marcos de responsabilidade fiscal construídos ao longo de sucessivos governos.
Além de escancarar o cinismo e a falta de visão da realidade por parte do mercado, o boi anabolizado grita o escárnio da ostentação dourada num país em que a fome voltou a ser uma realidade para milhões de brasileiros.
Não à toa virou, e tomara que seja para sempre, um ponto de realização de protestos dos movimentos sociais.
Bolsonaro acaba de implodir o Bolsa Família, política social permanente de transferência de renda, para colocar em seu lugar um auxílio — nome paternalista, antigo, que já remete a favor, a beneplácito político-eleitoreiro — provisório, mal-ajambrado, cuja fonte de receita ainda é incerta, além de flagrantemente inconstitucional.
Cadê o gado faria-limer para protestar contra isso, que claramente piorará ainda mais os indicadores tanto fiscais quanto sociais do país, à custa apenas de um capricho e de um ato desesperado de um presidente incapaz de se reeleger?
Enquanto aqueles que detêm o PIB e o poder de influenciar politicamente o Congresso não se derem conta de que essa postura bovina em relação ao governo os levará ao precipício junto aos mais pobres, a boiada seguirá passando.
Bolsonaro, animado pelo aval que teve da Câmara para a PEC criminosa da pedalada nos precatórios, já fala em reajuste indiscriminado de salários para servidores. Paulo Guedes faz que não escuta e sai louvando os benefícios do congelamento de salários! Parece que o ministro da Economia acredita que, se fizer o jogo do contente, o presidente desistirá de arrombar o cofre. Pensamento mágico.
Os promotores do touro de fibra de vidro pintado de dourado berrante são os mesmos que calculam em mais de R$ 1 trilhão o rombo que o calote nos precatórios legará até 2036. Não é preciso ser expert em finanças para entender o que isso representa em relação a programas como o Auxílio Brasil. E, ainda assim, a boiada passa, enquanto avançamos dia a dia no ridículo e no descrédito.
Vera Magalhães, jornalista