O orçamento secreto tornou-se um dos pontos mais importantes do debate político na eleição presidencial justamente porque sua existência retirou do Executivo a possibilidade de comandar as políticas públicas, já que parte relevante do Orçamento da União é distribuída por deputados e senadores para suas bases eleitorais sem que haja visão do conjunto para que sejam alocadas nos projetos prioritários para o país, não para os individuais de parlamentares.
Um ponto que vale destacar: o orçamento secreto é necessariamente sinônimo de corrupção justamente por não ser transparente e sua execução ocorrer por decisão dos presidentes das Casas Legislativas, em vez de pelo Executivo, abrindo espaço a comportamentos desviantes e corruptos. O cientista político Carlos Pereira, da Fundação Getúlio Vargas do Rio, especialista na questão, lembra que o presidencialismo multipartidário perde funcionalidade quando o Executivo não tem ferramentas discricionárias de construção e manutenção de maiorias no Legislativo:
As emendas individuais e coletivas funcionavam como ingredientes fundamentais nesse jogo, pois eram relativamente baratas. Geravam, ao mesmo tempo, retornos eleitorais para os legisladores e de governabilidade para o presidente.
A situação começou a mudar quando, às vésperas de seu impeachment e em situação de extrema vulnerabilidade política, a presidente Dilma Rousseff aceitou abrir mão da discricionariedade na execução das emendas individuais dos parlamentares.
Essa era uma exigência antiga de deputados e senadores que, com o poder do Executivo de contingenciar suas emendas, ficavam nas mãos do presidente e de ministros, “mendigando” a execução delas. Dilma perdeu os anéis para não perder os dedos, mas foi muito tarde. O mesmo aconteceu com o ex-presidente Collor, que, depois de um longo desgaste com o Congresso, tentou cooptar a maioria para barrar o impeachment liberando verbas e fazendo favores, mas acabou derrubado com a participação daqueles a quem procurara tardiamente em busca de apoio.
Os casos dos presidentes cassados Collor e Dilma têm outra situação comum. O ex-presidente Lula se gaba de ter criado vários instrumentos de investigação e de não ter impedido a apuração da corrupção que agora admite ter ocorrido nos governos petistas. Também Dilma agiu da mesma maneira e assinou a legislação que institui na legislação brasileira as delações premiadas, que acabariam ferindo de morte os governos petistas. Collor agiu da mesma maneira, não impediu nem tentou interferir nas investigações que acabaram levando a seu impeachment. Deve haver alguma explicação psicológica para essas atitudes, talvez uma vontade inconsciente de ser punidos. Mas, voltando a Bolsonaro, por completa incompreensão do presidencialismo multipartidário brasileiro, ele também cedeu e perdeu a discricionariedade nas emendas coletivas. O cientista político Carlos Pereira explica as consequências:
No momento em que os parlamentares internalizaram que não precisavam mais votar consistentemente com os interesses do Executivo para obter em troca a execução de suas emendas, o Executivo foi forçado a encontrar novas moedas de troca. A saída via orçamento secreto para lidar com a impositividade da execução das emendas foi predatória, porque o presidente escolheu se aliar ao Centrão em condição de extrema vulnerabilidade política e, portanto, com baixo poder de barganha para estabelecer os termos de negociação.
As emendas de relator foram o preço que o Centrão cobrou de um presidente enfraquecido para preservar sua cabeça. O governo Bolsonaro não só criou um mecanismo pouco transparente de recompensa, mas também entregou sua execução ao Legislativo. Entretanto, institucionalmente, as emendas de relator ainda não são obrigatórias. Portanto, podem simplesmente não ser executadas se assim o próximo presidente desejar.
Para Carlos Pereira, não será difícil convencer parlamentares de que “o jogo orçamentário coordenado pelo presidente gera menos incertezas para os próprios legisladores”. O inquietante, segundo ele, “é que Lula, a alternativa eleitoral mais viável até o momento para derrotar Bolsonaro, também demonstrou ser um mau gerente de coalizão (via mensalão e petrolão), e não há sinais claros de aprendizado diante de seus erros”.
Não sou tão otimista quanto Pereira quanto à aceitação dos parlamentares de abrir mão dos poderes conquistados. Ao contrário, vejo nesse ponto a origem de atritos políticos relevantes se Bolsonaro for derrotado. Ou a volta dos mensalões da vida, dependendo do eleito.
Merval Pereira, jornalista
Fonte: https://oglobo.globo.com