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O paradoxo da Lei escrita não escrita

A seletividade penal da Lava Jato foi comprovada de maneira indubitável pelas revelações do The Intercept

. Os procuradores escolhiam quem processar e quem não seria processado. A verificação da existência ou não de condutas ilícitas (atividade central do MPF, cuja atividade é limitada pelo princípio constitucional da impessoalidade) era irrelevante. Inocentes podiam ser processados por convicções (caso de Lula e Fernando Haddad), culpados em potencial eram preventivamente inocentados por serem (caso de FHC e Jair Bolsonaro).

Os princípios constitucionais do Direito Penal foram ignorados. Os limites definidos pelos tipos penais foram contornados. O crime de prevaricação caiu em desuso. O de abuso de poder jamais chegou a ser objeto de cogitações. Instaurou-se assim no seio do Sistema de Justiça um abismo entre a Lei escrita e seu cumprimento. Em alguns casos uma Lei benéfica não podia ser colocada ao alcance dos réus inocentes e/ou dos seus advogados. Em outros, a Lei maléfica não deveria produzir efeitos contra os suspeitos protegidos pelos procuradores lavajateiros.

A Lei, entretanto, não foi modificada. Ela continuo sendo a mesma, o que levou os advogados das vítimas ao desespero. Os juristas se dividiram em dois campos antagônicos irreconciliáveis. Enquanto uns sustentavam a necessidade da Lei ser aplicada com rigor técnico, outros se esforçavam para justificar os abusos cometidos pelo Sistema de Justiça invocando um bem supostamente maior. E enquanto esse debate seguia inutilmente seu curso, o Judiciário continuou legitimando os abusos lavajateiros.

Mas então os procuradores se tornaram ambiciosos demais e descuidados ao extremo. Eles colocaram tudo a perder quando passaram a usar a Lava Jato para ganhar dinheiro. O golpe bilionário que eles pretendiam dar contra a União foi suspendo pelo STF. Os vazamentos publicados pelo The Intercept destruíram a credibilidade jurídica das condenações. Essa semana o STF anulou uma delas. Várias outras sentenças terão que ser anuladas, inclusive a que acarretou a prisão de Lula (e facilitou a chegada de Bolsonaro à presidência).

Norma geral e abstrata que deve ser aplicada de maneira impessoal, a Lei não tem lado. Ela deveria ser colocada num pedestal. Nem mesmo as autoridades do Sistema de Justiça deveriam se colocar acima dela ou sujeitá-la aos seus caprichos pessoais, políticos, ideológicos, sociais, religiosos ou econômicos. Do outro lado da Lei estão apenas os bens jurídicos que ela protege: a paz civil que depende da igualdade entre os cidadãos, da presunção de inocência, da impossibilidade de alguém ser condenado sem ter cometido um crime, da inevitabilidade da perseguição penal daquele contra quem existem indícios de conduta delitiva, etc…

Desde tempos imemoriais a Lei escrita funciona como uma garantia da civilização. Os gregos gravavam suas Leis em pedra e colocavam-nas nos Templos à vista de todos. A destruição dos suportes das Leis equivaliam então à destruição das próprias Leis. Por isso, elas eram objeto de culto e só podiam ser removidas dos Templos quando fossem revogadas. As pedras contendo os textos legais não podiam ser facilmente manuseadas, razão pela qual uma face da pedra continha a Lei e ficava exposta a outra (voltada para o Templo) não continha nada.

Cada cidade-estado grega se limitava a aplicar suas Leis aos seus próprios cidadãos (e aos estrangeiros dentro dela, caso eles fossem admitidos na cidade). Fora dos seus limites do seu território a Lei de uma cidade não tinha validade e eficácia. As disputas entre as cidades eram resolvidas com o emprego da força bruta. Quando uma cidade invadia a outra e impunha uma nova Lei (como ocorreu durante a Guerra do Peloponeso), as Leis anteriores eram removidas dos Templos.

Desde 2015 os procuradores, juízes e desembargadores lavajateiros fizeram nossas Leis perder sua validade e eficácia dentro do Brasil. Elas continuaram escritas (nos livros, nos websites governamentais, nas sentenças, etc…), mas não podiam surtir efeitos. Mesmo quando as violavam, ignoravam ou contornavam empregando interpretações ‘alternativas’ os membros da operação se colocavam (e eram colocados) fora do alcance delas. As vítimas escolhidas pela Lava Jato foram tratados como se fossem inimigos externos da cidade-estado jurídico-midiática criada no interior do Estado brasileiro.

A Lei não escrita aplicada pela Lava Jato existia apenas nos chats sigilosos entre os membros do MPF e do Judiciário. Ao publicá-los, o The Intercept acabou com a farsa e obrigou o STF a fazer uma escolha letal. Para salvar a operação e seus operadores, o Tribunal terá que aplicar aquela estranha Lei escrita não escrita que garante tanto a seletividade penal quanto o sucesso da conspiração urdida por procuradores e juízes. Para salvar o Brasil e suas instituições, os Ministros do STF terão que sacrificar a operação e seus operadores no altar das Leis brasileiras.

Lula não era um cidadão da Lava Jato. O fato dele ser cidadão do Brasil era apenas um incômodo irrelevante. Todavia, ao insistir na sua inocência, ao não desistir de se defender, o “sapo barbudo” impediu a consolidação da fraude. Quando o libertar o STF reconhecerá enfim a soberania da Lei brasileira dentro do nosso país e destruirá de uma vez por todas o que resta da soberania excepcional da cidade-estado jurídico-midiática? A conferir.

Uma última observação. Se as nossas Leis também fossem gravadas em pedra os cidadãos brasileiros estariam vendo os escombros delas há vários anos. “Naquele tempo, era possível ver as Leis escritas (nos livros, nos websites governamentais, nas sentenças, etc…) e ignorar que elas haviam perdido sua substância porque deixaram de ser aplicadas pelo Sistema de Justiça”, dirão no futuro alguns juristas brasileiros. Esse pode ter sido o maior legado da Lava Jato para a História do Direito no Brasil: os vilões lavajateiros revelaram ao mundo e a nós mesmos a maior e mais duradoura Lei não escrita brasileira.

Advogado

Fonte: https://jornalggn.com.br