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O Ovo é o Mundo

Num pequeno vilarejo no norte do Peru, numa dessas viagens que fazemos em busca do desconhecido, das verdades sobre mundo, conheci uma senhora chamada Huiracocha.

Em sua casa redonda (isso mesmo, redonda), encostada a uma montanha erma, tive a sensação de que eu havia regredido milhares de anos e ali, entre as ravinas e falésias celestiais, estava sendo sorvida pela força contida de uma sabedoria ancestral.

Antes que eu perguntasse sobre a estranheza de sua casa, ela foi logo dizendo: Tudo que é quadrado nos aprisiona; veja a televisão, o dinheiro, o apartamento, o cartão de crédito.  Em verdade, não me recordo de ter visto um órgão humano, um tronco de uma árvore, um corpo celeste ou até mesmo a imagem de um disco voador quadrados.

Concentrada em si mesma, eloquente e ininterrupta, ela continuou, com uma voz que vinha de dentro, do corpo nu e enrugado, traduzindo a extensão de uma força estranha, naturalmente desconhecida, mas certamente palpável como a terra dura sob os meus pés: Um Eremita me contou que só se nasce quando se morre, e para nascer tem de quebrar o ovo. O ovo é a origem de tudo, é o germe primitivo e embrionário da criação do universo. O ovo é a matriz energética da vida, a forma primordial da existência.

Eu desconfiava que me faltava aquele sopro de consciência que torna toda criatura vivente compreendida. O ovo não é um ovo. O ovo é o embrião de tudo que (antes) tem vida. O que tem de secreto numa vida? Qual o mistério oculto antes do começo e depois do fim da vida?

A voz da mulher soava como rugidos mitológicos de Hesse ecoando sobre os picos lacônicos e cingidos de amarelo do fim do dia. “A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer, terá de destruir um mundo”.

O ovo está presente nas ciências, nas artes, na filosofia e nas religiões. Os ovos mitológicos de ouro e prata, por exemplo, são o sol e a lua; o ovo filosófico dos alquimistas é a sublime sabedoria, e o ovo da páscoa dos cristãos transcende a matéria, é a ressurreição e a vida.

Somos livres viajantes do espaço-tempo, mas estamos presos no nosso pequeno ovo, no que julgamos conhecer sobre nós e sobre como as coisas funcionam. A liberdade do voo não seria também uma prisão?  A casca dura do ovo é a fronteira que nos separa do mito e nos impede de voar.

O cheiro morno do pão vindo da cozinha me recordava o cafezinho brasileiro, salivei doce, sorri pequeno feito a nanica xícara que me servia chá. Medrosa, procurei abrigo no canto daquela boca de anjo que me falava da Deusa Mama. Não tenha medo; inobstante, todos vivem do mistério, disse ela em chamas.

De repente muita coisa se tornara pequena porque o grande passara a existir nos meus olhos. A beleza do lugar era como uma massa corpórea que se transfigurava em sombra e imaginação. A primeira noite no Vale Sagrado tornara todas as labaredas escuras, a serpente adormecida se erigira, sonâmbula, do fim do mundo. Era o tempo tomando as feições da mente universal.

Permaneci sete dias sob os olhos vigilantes da matriarca, na esperança de aprender a pensar sem as refesteladas e confusas preces enraizadas na minha memória enferrujada. Tudo me parecera novo, no entanto sempre existiu. Há uma filosofia no ovo.

Depois da pandemia voltarei, o trem leva todo mundo para lá. Estarei novamente com aquela Senhora desabitada e ao mesmo tempo cheia de si iluminando os meus pés com as suas brasas milenares curativas.


Bethe Oliveira. Economista. Especialista Sênior em Planejamento Estratégico e Gestão Pública. Autora de “Loucas e Bruxas, Bruxas e Loucas: contos e poeminhas. Editora 3 Serpentes