A campanha de Jair Bolsonaro terminou o domingo entre aliviada e exultante. Aliados comemoravam a decisão de Alexandre de Moraes de mandar o PT retirar do ar reproduções do vídeo em que, em entrevista a um podcast na última sexta-feira, o presidente dizia que “pintou um clima” quando visitou uma casa que abrigava refugiadas venezuelanas de 14 e 15 anos. O desempenho do candidato do PL no debate com Lula também era fator de otimismo. Não contavam com a língua de Bolsonaro.
Eleito em 2018 com um forte aparato de redes sociais, consolidado muito à custa de suas “mitadas”, as declarações sem filtro que deu ao longo da vida sobre mulheres, negros, tortura, população LGBTQIA+ e outros alvos, o presidente se vê assombrado, na campanha pela reeleição, justamente pelo tipo de comunicação que o notabilizou.
De duas, uma: ou o Q.G. bolsonarista não fez uma varredura para constatar que Bolsonaro já havia mencionado o caso das meninas venezuelanas pelo menos num evento transmitido pela TV Brasil e a um outro podcast (de um pool evangélico, aliás), ou contou com o amadorismo da campanha de Lula para que a reiteração da insinuação de que as meninas se prostituíam passasse batida. Deu errado.
Por isso a correria para, de novo, recorrer a Michelle Bolsonaro como para-raios de desgaste e gravar um vídeo de desculpas incompreensível, já desmentido na largada. Afinal, se Damares Alves visitou a comunidade de São Sebastião na ocasião do passeio de moto em que Bolsonaro diz que “pintou um clima”, por que então, na última sexta-feira, o presidente voltou a fazer insinuações de que as refugiadas estariam expostas a exploração sexual, quando, na verdade, se arrumavam num sábado à tarde por causa de um curso de estética?
Todo esse caso é torpe pela tentativa absurda de usar refugiadas, ainda por cima menores de idade, numa narrativa que o próprio Bolsonaro confessa diante da própria mulher que sabia ser mentirosa, para fazer ilações sobre o que poderia ocorrer no Brasil caso a esquerda vencesse.
É esse o tipo de devaneio perigoso que o presidente da República vem oferecendo ao eleitorado, mirando sobretudo os religiosos: um pastiche de alucinações moralistas a respeito do que a esquerda representaria de risco, quando na verdade é ele que, quando fala sem filtro, dá visão a fantasias sórdidas que depois tem dificuldade de explicar.
Outras declarações que agora repudia e tenta vincular à campanha de Lula têm a mesma origem dessa lenda urbana das meninas venezuelanas: a mente de Bolsonaro. O canal para que ganhem a luz é sua boca.
De acordo com um integrante da campanha, é a língua do presidente hoje o maior fator de preocupação quanto à possibilidade de ele tirar a vantagem que Lula tem e vencer o pleito.
Todas as outras armas estão sendo usadas: indústria de fake news, uso diário da máquina sem precedentes nem limites, terrorismo religioso e apoios de máquinas importantes em colégios eleitorais decisivos. Mas o temor diante do inesperado rebote do caso das meninas venezuelanas é que, nos próximos 12 dias, outros casos de Bolsonaro sem filtro ganhem a luz.
Por isso a ordem no Q.G. bolsonarista é dupla: escarafunchar tudo o que pode comprometer o presidente, para preparar as vacinas (ops!) e também armazenar munição similar contra Lula e próceres petistas.
O carluxismo, que dita as regras da campanha nas redes e até a postura de Bolsonaro em debates, achou que seria um grande trunfo colocar o presidente para falar sem freios por horas em podcasts de grande audiência e nenhuma contestação. Acontece que, quando à vontade, o presidente costuma dar vazão ao que pensa, o que vem se revelando mais prejudicial à campanha que o legado de ineficiência de seu governo de quatro anos. A boca que criou o mito vai tratando de mostrar seus pés de barro.
Vera Magalhães, jornalista
Fonte: https://oglobo.globo.com