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O grotesco no bolsonarismo e a inépcia das oposições

Existe uma falsa crença no pensamento democrático e intelectual de que os apoiadores de Bolsonaro fariam parte

de algum movimento ideológico radical. Contrariando essa premissa, os melhores estudos acerca dos movimentos totalitários do passado, particularmente acerca do nazismo e do fascismo, mostram que os adeptos desses movimentos seguiam muito menos uma ideologia e muito mais o líder. Os elementos ideologizados daqueles movimentos eram muito reduzidos, mais ligados aos núcleos dirigentes. Com o bolsonarismo esse aspecto é ainda mais acentuado, dado o atraso político, cultural e educacional da população brasileira. Assim, talvez nem mesmo 1% dos 30% da população brasileira que apoia Bolsonaro tenha alguma noção do conteúdo ideológico, das atitudes, das propostas e das ideias que o presidente defende. A exemplo dos movimentos autoritários e totalitários do passado, os seguidores de Bolsonaro seguem o líder, o suposto mito, não uma ideologia. Como constata Hannah Arendt, bastou a queda de Hitler para que o próprio nazismo como expressão de massa desaparecesse. O elemento mobilizar e catalizador, de fato, era a figura do líder.

A percepção da natureza do bolsonarismo é fundamental para que se possa definir uma estratégia de enfrentamento. Por exemplo, lideranças das oposições e representantes intelectuais das esquerdas têm dispendido uma energia enorme em atacar o fascismo de Bolsonaro. Trata-se de uma luta inglória, pois nem mesmo a maioria esmagadora dos apoiadores do presidente sabe o que é o fascismo. A forma mais eficaz de luta nesses casos consiste num fogo cerrado contra a figura do líder, na sua desconstrução política e programática a partir do plano dos interesses concretos e reais dos grupos sociais.

Os líderes autocratas e totalitários preferem travar a luta no plano dos valores nacionais e morais, no plano das pautas culturalistas porque este terreno lhes é vantajoso. Isto porque as sociedades são naturalmente conservadoras. Os líderes não só expressam o conservadorismo natural das sociedades, como confortam moralmente o desespero e o ressentimento das pessoas, principalmente nos momentos de crise. O discurso moralista dos líderes é repleto de fórmulas vazias e o seu conteúdo, tanto no discurso, quanto na propaganda é sistematicamente mentiroso. Os seguidores do líder não julgam o conteúdo do discurso e da propaganda porque isto pouco importa. O que importa é a crença que eles têm no líder, a fé que depositam nele.

Outro elemento que atrai os seguidores dos líderes autoritários e totalitários é o caráter grotesco e violento de suas manifestações. Várias pessoas ficaram chocadas com o fato de Bolsonaro ter elevado o torturador coronel Brilhante Ustra à categoria de “herói nacional”. Este não é um fato novo. É bastante comum os ditadores glorificarem os crimes do passado preparando terreno para os crimes do futuro. Como disse um dos biógrafos de Hitler, os nazistas estavam convencidos de que o mal exerce uma atração mórbida no nosso tempo.

Assim, quando Bolsonaro afirma que os índios deveriam ter sido exterminados pela cavalaria brasileira, que os petralhas deveriam ser fuzilados, que as reservas deveriam ser entregues ao garimpo, que a floresta amazônica deve ser derrubada para dar lugar ao progresso, toda essa retórica da violência e da destruição é excitante e faz parte desse contexto da atração mórbida. Bolsonaro não apresenta nenhuma novidade ao atacar agressivamente a cultura, a ciência, as universidades, os institutos de pesquisa, as pesquisas, a arte e assim por diante. Ele têm consciência do valor propagandístico e persuasivo do mal, da atração que ele exerce e, por isso, alimenta um desprezo solene aos padrões morais do senso comum e às práticas e valores tidos como consensuais em uma sociedade. Aquilo que ele chama de “politicamente correto”.

Para líderes como Bolsonaro, interessa menos a força numérica e mais a força bruta, interessa menos a defesa de propostas racionais de governo e mais a manifestação de ideias que propaguem a fanatismo. Eles acreditam que conquistarão a força numérica pela pressão da força bruta.

Desta forma, Bolsonaro e o bolsonarismo não têm nada de surpreendente e de novo. São uma expressão tosca e deformada de movimentos ditatoriais e totalitários do passado. O que surpreende é a incapacidade, a inépcia e a falta de coragem das oposições de enfrentar o caráter grotesco, mentiroso e violento de Bolsonaro e do bolsonarismo.

Os partidos de oposição não convocaram nenhuma manifestação contra o governo desde o início do ano. Não foram capazes de se articular na reforma da Previdência e sofreram uma derrota vergonhosa. Não estão sendo capazes de liderar a luta contra o desemprego. Não são capazes de formar frentes amplas em defesa das universidades, do ensino, da saúde e das instituições de pesquisa. Não tomaram nenhuma iniciativa para formar uma ampla rede política e social de defesa do meio ambiente e da Amazônia. As esquerdas sequer parecem ter consciência da gravidade que a degradação ambiental e a destruição da floresta amazônica representam para o Brasil e para a humanidade. Não por acaso, o desleixo para com as políticas ambientais e para com a destruição da Amazônia já havia começado no governo Dilma.

O que se cobra das oposições e das esquerdas é que tenham iniciativa política e estratégia para enfrentar o caráter grotesco, mentiroso e violento do governo Bolsonaro. É que tenham coragem de lutar contra a liga do mal que se articula em torno de Bolsonaro. O que falta é a formação de redes e frentes de luta em três planos: 1) no plano institucional e parlamentar envolvendo, inclusive, governadores, como no caso da defesa da Amazônia, do Nordeste etc.; 2) no plano do enfrentamento judicial em face dos atos de ilegalidades e inconstitucionalidades do governo e da agressão contra os organismos de defesa dos direitos humanos, dos direitos trabalhistas etc.; e 3) no plano das lutas e mobilizações populares e sociais, como desemprego, moradia, educação, meio ambiente, saúde etc..

Recentemente, Rodrigo Maia fez uma pergunta pertinente: “onde erramos” para permitir a vitória de Bolsonaro. O centrão, o PSDB, MDB e a grande mídia erraram ao patrocinar o golpe. O STF, o Judiciário, o Ministério Público validaram o golpe e permitiram que a Constituição e o Estado de Direitos fossem atacados. O PT cometeu erros em série no governo e albergou um sistema que já era corrupto.

Na verdade, Bolsonaro é produto do colapso do sistema partidário e político que estava vigendo. Os partidos, além de se corromperem em grande escala, de serem os patronos e usufrutuários de privilégios inaceitáveis, se ossificaram, bloquearam a renovação e afastaram a juventude. Deixaram de dialogar com a sociedade, com aquelas pessoas que vivem afastadas da política e estas se tornaram presas fáceis para o bolsonarismo.

Os partidos da oposição em geral e da esquerda em particular encontram uma enorme dificuldade de se reposicionarem na conjuntura. O PT, por exemplo, se tornou um partido nostálgico, apologético de si mesmo e de Lula e perdeu a capacidade de indicar o futuro. O PSol parece ter transformado as pautas culturalistas em programa geral. Assim, mergulhado na fragmentação não será capaz de se construir como uma alternativa ampla de poder. Ciro Gomes transformou a sua falta de controle em agenda principal de sua atuação política. Desta forma, ficou fácil para Bolsonaro, com seu caráter grotesco, mentiroso e violento deter o domínio absoluto da agenda de debate político do país. Com suas locuções agressivas e destrutivas ele pauta toda a mídia, incluindo os sites de esquerda, pauta todos os partidos e políticos e pauta o debate da sociedade. Prisioneiras de sua inépcia, as oposições mostram-se incapazes de reagir.

Cientista político e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política (FESPSP)

Fonte: https://www.brasil247.com