Eis que o grande acontecimento político da semana abre uma nesga de luz na sombria noite brasileira
. Por óbvio, não falo da aprovação, em segundo turno, da Reforma da Previdência, esse Frankenstein destruidor de direitos dos mais pobres ao qual eu, meu Partido e outros parlamentares progressistas nos opusemos vivamente.
Nesse caso, combatemos o bom combate, a resistência nas ruas e no parlamento logrou conquistas importantes que diminuíram alguns dos muitos prejuízos contidos no texto. Mas o fato é que o atual parlamento tem uma composição amplamente favorável às pautas econômicas antipopulares – nesse terreno, nos resta a luta de resistência, que travamos abnegadamente e sem tréguas.
O acontecimento alvissareiro da semana, ao qual esse texto se refere, foi o verdadeiro levante institucional contra o disparate da ordem de transferência do ex-presidente Lula, à revelia do direito, do bom-senso e mesmo de elementares sentimentos humanitários – afinal, levá-lo ao presídio de Tremembé poderia ter implicações para sua segurança e mesmo para sua vida.
A atitude da PF e da juíza da execução penal, extemporânea e inconsistente com a já autorizada progressão de regime concedida a Lula, simbolizou uma tentativa de desviar o foco das graves revelações de ilegalidades que envolvem a força-tarefa da Lava-Jato e seus principais agentes, além de sinalizar com uma escalada de parte do judiciário para impor um Estado de exceção, abertamente autoritário e contra as garantias constitucionais.
Ato contínuo, a Câmara Federal reagiu amplamente e de maneira exemplar. Afora os discursos condenando a atitude, que se avolumaram e envolveram até mesmo deputados do DEM e do PSDB, formou-se uma delegação suprapartidária de cerca de 70 parlamentares, com distintas posições no espectro ideológico, para procurar institucionalmente o Supremo Tribunal Federal e solicitar a revogação da ordem da justiça paranaense.
Na esteira dos acontecimentos, a sessão plenária do Supremo Tribunal de Federal decidiu, pelo acachapante placar de 10 votos a 1, suspender a transferência, acatando o pedido da defesa do ex-presidente.
Seria inocente acreditar que essa vitória pontual venha a simbolizar, de imediato, uma mudança qualitativa na correlação de forças na sociedade, ainda favorável às vozes do atraso e do obscurantismo. Não se mobilizará, nesse momento, o mesmo contingente para defender a liberdade do ex-presidente Lula ou para barrar medidas econômicas de cunho liberal. Infelizmente, algumas pautas mais avançadas e democráticas, por justas e importantes que sejam, ainda abarcam parcelas já aderentes às forças progressistas e de esquerda.
Contudo, seria um erro político crasso minimizar ou tratar como “mera obrigação” o levante institucional de ontem. Ora, na quadra atual, o Brasil vive justamente uma luta que opõe institucionalidade x arbítrio, democracia x autoritarismo, civilização x barbárie. Portanto, o que se viu ontem foi um primeiro ensaio de formação de uma frente ampla democrática, cujo objetivo central é defender o país contra a escalada do arbítrio.
Essa frente deve estar aberta a todos os segmentos que defendem a democracia, a institucionalidade, os direitos e garantias constitucionais, sem veto de coloração política ou ideológica. Ao enquadrar os arreganhos autoritários do lavajatismo, a frente ampla democrática fez seu ensaio geral em grande estilo.
Esse assunto deve ser abordado mais detalhadamente em outro artigo, mas vale o registro dos debates realizados no Grupo de Trabalho constituído na Câmara para produzir uma síntese entre o PL 882/19, o “pacote” de Sérgio Moro, e o projeto elaborado por uma comissão de juristas liderada por Alexandre de Moraes, hoje ministro do Supremo.
O PL 882/19, que ganhou grande expressão midiática, se pauta pelo punitivismo, facilita o encarceramento em massa e a violação de garantias fundamentais do processo penal. Nas discussões do GT, Moro foi derrotado em dois aspectos centrais de sua proposta: foram rejeitados a prisão antes do trânsito em julgado da sentença condenatória e a adoção do instituto “plea bargain”.
Este último é uma espécie de acordo penal, copiado do modelo norte-americano, que dá superpoderes ao Ministério Público para barganhar a redução da pena, desde que o réu assuma o crime e renuncie ao devido processo legal, antecipando o cumprimento de pena, inclusive a privativa de liberdade.
As derrotas de Sérgio Moro no tal “pacote” devem ser comemoradas por quem defende a Constituição e suas garantias fundamentais, como a presunção de inocência, o direito à ampla defesa e o devido processo legal.
É deputado federal pelo PCdoB-SP e membro do GT Penal da Câmara
Fonte: https://jornalggn.com.br