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O direito coletivo sobrepõe o direito individual

Iniciamos este artigo falando dos direitos humanos, que no século XVIII foram reconhecidos documentalmente, através da Bill of Rights (carta dos direitos), também chamada de Declaração dos Direitos dos Cidadãos dos Estados Unidos. Em pouco tempo a França seguiu o mesmo caminho e, no contexto da Revolução Francesa, editou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Foram as primeiras legislações que trouxeram garantias às pessoas frente ao governante, como a liberdade, igualdade, propriedade, direitos políticos, direito de serem processadas mediante um devido processo antes de serem presas, dentre outros. Todavia, não era completa. Os negros, por exemplo, continuavam escravos, e as mulheres não tinham direitos, eram apenas esposas.

Após a segunda guerra mundial, o mundo percebeu a que nível a crueldade humana era capaz de chegar, razão pela qual criou a ONU (Organização das Nações Unidas) e em seguida, mais precisamente em 1948, esta Organização redigiu a Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinada por várias Nações e que até hoje serve de modelo para muitos países como o Brasil.

Hoje temos na nossa Constituição Federal de 1988, no Título II, que traz os Direitos e Garantias Fundamentais, o capítulo que trata dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos. Nela, homens e mulheres são iguais nos direitos e obrigações, a manifestação do pensamento é livre, a intimidade, a honra e a liberdade de crença são invioláveis. A Carta Magna ainda prevê que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de Lei. Esse é o direito que será enfrentado nesse artigo.

Ninguém pode obrigar outrem a fazer ou não fazer algo, senão em virtude de uma Lei que determine tal ato. Portanto, quando se diz que ninguém será obrigado a tomar uma vacina ou um outro medicamento, está correto, salvo se houver uma Lei que, por algum motivo, determine tal medida.

Hoje enfrentamos a maior pandemia que nossa geração já enfrentou. Já perdemos, no mundo, mais de 1,6 milhão de pessoas infectadas pela Covid-19, sendo o Brasil o segundo país que mais vidas perdeu para essa doença, hoje superando 180 mil.

Nas últimas semanas o vírus ganhou força, principalmente nas regiões que estão no inverno, como a Europa e EUA, mas, para nossa surpresa, o aumento da contaminação também está acontecendo em vários países que não estão no frio e que a pandemia estava controlada, como o Brasil. Por tal motivo, governantes de todo o mundo estão recrudescendo as medidas sanitárias.

O mundo em 2020 mudou. Pessoas ficaram isoladas em casa, as aulas, o trabalho e as atividades sociais e esportivas foram do dia para a noite suspensas por meses, e sem previsão para retorno. Pessoas foram contaminadas e passaram a morrer. Passamos a ter medo de adoecer e de perder entes queridos. Trabalhadores da saúde e gestores públicos responsáveis foram ao combate, salvaram vidas, mas lamentavelmente acompanham diariamente pessoas morrerem. Em suma, o mundo ficou mais triste.

Hoje só há uma saída para a humanidade parar de perder vidas e retornar à sua rotina, o medicamento que combate essa pandemia. Uma vacina, uma esperança, uma luz no final do túnel. O mundo aguarda ansiosamente sua liberação, aplicação e, consequente, o fim dessa pandemia.

Há quem, erroneamente, entenda que, por já ter sido contaminado por esse vírus, não poderá ser reinfectado e, logo, não precisa mais se isolar, nem respeitar as medidas sanitárias que evitam o contágio como isolamento, uso de máscara, álcool-gel, lavar as mãos etc. Erro crasso, hoje já temos casos de reinfecção, além disso, quem já teve Covid – 19 pode transmitir o vírus para terceiros. Assim, mesmo que você não possa ser infectado, se tiver contato com o vírus poderá transmiti-lo a terceiros.

Dessa forma, só há uma solução para nossa humanidade: a vacina. Por tal motivo que nossa Corte máxima decidiu recentemente que a vacinação poderá ser obrigatória.

Em setembro de 2020 escrevi um artigo sustentando ser crime se recusar a tomar a vacina contra a Covid – 19, isso porque a Lei 13.979/20 (lei da Covid) tornou, se necessário, obrigatória algumas medidas para combater a pandemia, como a aplicação da vacina pelas Autoridades. Tal obrigatoriedade está prevista no artigo 3º: “Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: […] III – determinação de realização compulsória de: […] d) vacinação e outras medidas profiláticas”.

Importante trazer aqui que esta compulsoriedade não é novidade, o Estatuto da Criança e do Adolescente obriga a vacinação da criança e do adolescente nos casos apontados pela Autoridade Sanitária, punindo os pais que se recusam a permitir tal vacinação, com multa de 3 a 20 salários mínimos.

Nesse sentido, nosso Código Penal, em seu artigo 268, criou o delito de infração de medida sanitária preventiva, nos seguintes termos: “infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”, com pena privativa de liberdade de um mês a um ano e multa, aumentada em 1/3 se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.

Esse crime foi criado justamente para tutelar a saúde pública, punindo quem não respeita ordem determinada pelo Poder Público, que busque impedir a introdução ou a propagação da doença contagiosa como a coronavírus.

Quis nosso legislador proteger a saúde coletiva, frente a saúde individual. Isso quer dizer que, se uma pessoa quiser se recusar a tomar um medicamento que combata uma pandemia como a Covid – 19, por já ter sido contaminado, por não ter medo da doença, por pura ideologia ou orientação política, não pode. Seu direito individual não prevalece frente a um direito coletivo. Como já dito, se todos não tomarem a vacina, não será possível combater a pandemia, isso porque tais pessoas continuarão a ser foco de proliferação e de contágio da doença.

Assim, aqueles que, por desconhecimento jurídico ou ideologia política pretendem se recusar a tomar a vacina contra o coronavírus, estarão colocando em risco suas vidas, as de terceiros e impedindo o combate da pandemia.

Em abril de 2020 o Poder Judiciário já enfrentou esse tema, quando um paciente com coronavírus se recusou a permanecer em isolamento. Vejam como decidiu um magistrado de Mato Grosso:“[…] ressoando cristalino que, nesse conflito entre o direito individual e o coletivo da sociedade à saúde pública, deve sobrepor-se o dever do Estado frente a proteção da população, não havendo dúvidas que, em situações como a dos autos, o direto fundamental de ir e vir do demandado deve ser relativizado”.

Tais decisões, somadas ao bom senso, nos dão um norte de como o Poder Judiciário deverá decidir se instado a se manifestar caso pessoas se recusem a tomar a vacina que combate a Covid – 19 e salva vidas.


*Fernando José da Costa, secretário da Justiça e da Cidadania