Há semanas escrevi sobre o que me parecia ser um dilema: como ajustar interesses tão opostos neste momento excepcional da vida da nossa sociedade, os interesses políticos de Bolsonaro e a crença nos dogmas da economia ortodoxa do Ministro Paulo Guedes. O Presidente se colocou numa arapuca política, pois depende, ao mesmo tempo, do apoio do Centrão no Congresso e da aprovação das camadas de baixa renda beneficiadas pelo auxílio emergencial.
O auxílio foi formulado às pressas, diante da emergência da pandemia e a contragosto do Ministro, mas “deu certo” no sentido de apoiar as famílias mais necessitadas no momento em que se cortavam os meios de sustento regular. Rapidamente, ele se traduziu em pontos percentuais de aprovação do Presidente, porém estes pontos “comprados” têm data para terminar. O programa é muito caro e cheio de imperfeições, o que permite que alguns recebam sem ter direito enquanto outros que preenchem todos os requisitos têm o direito negado. O fato é que a média do benefício é de mais de R$ 800 – R$ 600 no mínimo e R$ 1.200 para mães solteiras –, atingindo 66 milhões de pessoas. Para várias famílias de baixa renda, trata-se de um rendimento mensal nunca antes alcançado e que se traduziu numa simpatia súbita com o Governo.
Bolsonaro sabe bem disto, tanto é que já o estendeu uma vez, por dois meses e com valor integral, e logo vai anunciar mais três meses com valor reduzido, numa espécie de “desmame” suave. O problema é como organizar a retirada deste benefício, na virada do ano, bem quando os piores efeitos da pandemia tiverem passado e se espera que a economia volte a andar com suas próprias forças, ainda que bem devagar. Boa parte da demanda atual é sustentada pelo auxílio, nos mercados de produtos básicos, nas pequenas reformas da construção civil e em vários outros segmentos. Estes impulsos serão perdidos e a previsão é que o ambiente será ruim para os negócios: confiança em baixa, desemprego elevado, rendimentos contidos, inadimplência ainda alta e a consciência de que o mundo mudou para pior. Neste momento politicamente delicado, o orçamento de 2021 já estará em execução e a ortodoxia exigirá bons resultados fiscais. Tem tudo para dar errado.
Para tornar a situação ainda mais difícil, se o Ministro continuar amarrado à Lei do Teto de Gastos, se esvai qualquer possibilidade de equacionar o problema. E aí reaparece o dilema: o Presidente precisará muito gastar e o Ministro – e a Lei do Teto – não podem aceitar o gasto. A conta não fecha, a não ser que se fizesse um super ajuste nas demais despesas. Como não há clima político para aprovar esta alternativa, a conta não fecha mesmo. Não é por acaso que foi suspenso várias vezes nos últimos dias o anúncio de um novo programa em substituição ao Bolsa Família; o que o Ministro leva ao Presidente, este não aprova, e o que o Presidente quer e precisa do ponto de vista político o Ministro considera caro e rejeita.
Há uma saída, relaxar a Lei do Teto. Contudo, o Ministro, o mercado financeiro e a grande imprensa consideram a Lei a pedra angular da política econômica, o grande depositário da confiança dos agentes nacionais e estrangeiros que operam na economia brasileira. O que começa a se negociar neste momento é não uma quebra bruta do teto, mas um jeitinho, uma quebra parcial, seja por áreas do gasto, seja por um período específico de exceção, aproveitando o episódio da pandemia. Cada vez mais, economistas de diversas correntes têm discutido publicamente esta saída, os mais apegados aos resultados fiscais admitindo que erraram ao apoiar rigidamente a Lei no seu nascedouro, com Temer em 2016. Esta saída negociada constituiria uma derrota para o Ministro, mas ele já acumulou tantas e sempre preferiu permanecer no cargo.
Flavio Fligenspan, Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Fonte: https://www.sul21.com.br