Tenho escrito artigos sobre a possível trajetória do novo governo, de um lado, e do outro sobre as perspectivas da oposição de extrema direita.
Como os dois temas são entrelaçados – o sucesso do governo pode neutralizar a oposição mais radical –, tentarei abordar tudo num mesmo espaço.
Existem medidas já tomadas pelo governo que são difíceis de combater. Uma delas é a política social, sobretudo a garantia do pagamento do Bolsa Família no valor de R$ 600.
Jair Bolsonaro já pagava, por razões eleitorais, o Auxílio Brasil de R$ 600, além disso, anunciou várias vezes que o manteria, caso eleito.
Outro campo em que o debate ficará também complicado para a extrema direita é o do meio ambiente. Foi escolhida uma ministra com experiência no tema e criados vários núcleos ambientais em importantes ministérios. Isso significa que há uma chance de a política de meio ambiente ser transversal. Há possibilidades de atrair novos investimentos para a proteção da floresta e projetos de desenvolvimento sustentável.
O contra-argumento será o nacionalista, uma vez que grande parte dos investimentos vêm de fora. Mas o próprio Bolsonaro convidou Elon Musk para explorar nióbio na Amazônia e articulou com ele a criação de um sistema de satélites para conectar a região.
Embora possa despertar algumas reações locais, a política ambiental do novo governo é mais viável de um ponto de vista econômico, uma vez que Bolsonaro oferecia apenas uma devastação imediatista que aprofunda a pobreza.
No campo econômico, entretanto, existem alguns flancos. O governo, de um lado, ironiza as preocupações de equilíbrio fiscal, de outro, se dispõe a zerar a dívida estatal em dois anos. Lula da Silva, nos seus discursos, afirma que política social é investimento, enquanto Fernando Haddad, em Davos, promete uma reforma tributária e sobriedade fiscal.
Algumas empresas perderam dinheiro no mercado financeiro. Isso pode se espalhar por pequenos investidores. Da mesma forma, houve fechamento de fábricas e um desemprego decorrente. A extrema direita explora esse ângulo, afirmando que o País não só ficará mais pobre como já está ficando mais pobre. Os mais dramáticos ameaçam com a possibilidade de comermos gatos e cachorros.
Não há ainda nada decidido, mas o tempo tende a responder a essas dúvidas. Um critério bastante popular será o do aumento das condições alimentares dos mais pobres, inclusive a presença, ainda que discreta, da picanha em suas mesas.
Mas a política social se sustentará melhor se houver também a abertura de frentes de emprego, sobretudo os empregos verdes. Nos Estados Unidos, Joe Biden apresentou um projeto e conseguiu financiamento de US$ 430 bilhões para adaptar a economia às condições do aquecimento global.
No Brasil, o que existe até o momento é uma esperança do aquecimento da economia a partir da própria política social, abertura de empregos na realização de obras inacabadas e projetos estratégicos em curso como o do saneamento básico.
Não é um conjunto desprezível, no entanto, as possibilidades são muito maiores, a julgar pelo próprio discurso. Marina Silva falou em 12 milhões de hectares de terra degradada que podem dar trabalho a 260 mil pessoas.
Da mesma forma, a ampliação do acesso à internet pode representar por seu lado um grande avanço no potencial de renda da população mais pobre. Potencialmente, o mundo digital pode revolucionar até o governo, tornando-o mais eficaz e barato. Neste momento de governo amplo, não é uma proposta sedutora.
No campo dos direitos humanos, o governo escolheu pessoas que conhecem o tema distribuindo-as por pastas que vão dos próprios direitos humanos, passando por mulheres, igualdade racial e povos originários. Se houver recursos e bons projetos, é possível avançar de forma irreversível.
Mas há também alguns flancos. Pela primeira vez na História, um governo democrático brasileiro se vê às voltas com a necessidade de manter um grande número de extremistas presos. A maneira como os presos serão tratados e suas penas, personalizadas com justiça, será essencial para dominar a narrativa nesse campo. Nas primeiras semanas, a extrema direita utilizou a redes para estigmatizar as prisões em massa e compará-las com campos de concentração nazistas. Não houve resposta à altura, porque o governo parece centrado nas mídias convencionais. A batalha nas redes sociais continua intensa.
Finalmente, um detalhe que também vale mencionar. O governo começou a usar oficialmente a expressão “todos, todas e todes”. É a busca de linguagem inclusiva, cheia de boas intenções. No entanto, não é algo que surgiu da fala cotidiana, do uso constante popular. É uma proposta de vanguarda, tanto que não foi usada com frequência na campanha eleitoral. É por esse flanco que surgem grandes deformações produzidas pela extrema direita, como a ideia de “mamadeiras de piroca”, banheiros unissex e outras imagens repisadas nas redes.
A mais recente pesquisa sobre a popularidade do governo indicou que 54% esperam que seja melhor que o anterior. Mas 41% não confiam nele. A batalha não está de todo ganha, como pensam alguns. A partir do governo Bolsonaro, o clima ficou tenso e não se abrandará tão cedo.
Fernando Gabeira, escritor e jornalista
Fonte: https://www.estadao.com.br