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O caos do debate público

O caos do debate público

São tempos muito tumultuados na política. Estamos quase todos perdidos, patinando em gelo fino, não controlamos sequer o vocabulário da conversa social e brigamos por palavras e designações como em outros tempos, igualmente fatais, lutávamos pela fé verdadeira ou por conquista de terras e riquezas. E quem não se sente confuso há de ser porque deve estar investindo na confusão para faturar com o caos.

Não tenho explicações, só faço mapas. Infelizmente. Mas o que sei da nossa peculiar era política é que uma grande parte do desentendimento acontece por duas razões. A primeira é que o debate público provavelmente nunca esteve tão saturado, com tanta gente falando coisas tão diferentes ao mesmo tempo, o que leva todos a gritarem na esperança de serem ouvidas. O mercado de ideias, na metáfora liberal, virou uma feira superlotada, sob um sol escaldante, com mais vendedores do que compradores, em que todos berram e quase ninguém ouve ou entende.

Nesta década, não apenas estamos muito mais interessados em política do que há 15 anos, por exemplo, mas também tendemos a politizar absolutamente tudo. Os confins entre as esferas íntima, particular e pública já não fazem sentido: tudo deságua na esfera pública e as coisas mais pessoais e mais “apolíticas” se tornam objeto do acalorado debate político nacional. Tão dignas de atenção e energia pública quanto qualquer grave problema social ou alguma proposta de emenda constitucional.

A segunda razão é que as várias categorias de práticas políticas estão ocorrendo simultaneamente, e umas contra as outras.

Temos, naturalmente, a política instrumental clássica, geralmente praticada no quadro tradicional de direita versus esquerda, progressistas versus conservadores. Seus objetivos são estáveis, os meios e os atores são bem conhecidos, e envolve a disputa pela aprovação de projetos de lei e pela implementação de regulamentações e políticas públicas. No cerne de tudo isso está a luta por mandatos executivos e parlamentares em eleições livres e justas.

Mas nem todo mundo está na esfera pública para lutar por mandatos e bancadas parlamentares. Muitos certamente estão lá para a política como expressão e desabafo. No centro da arena estão sentimentos e afetos, o que significa muitas vezes ódio e ressentimento. O resultado da ação não é dirigido para solucionar um problema identificado, mas é um meio de expressar o que as pessoas sentem em relação à própria situação. A frustração facilmente se orienta para destruir, depredar. Quando não há o que de fato quebrar ou incendiar, move-se para o nível simbólico de destruição e ressentimento, que se materializam em ambientes digitais na forma de escaramuças e linchamentos.

Além disso, há a política dos movimentos morais, cujo principal objetivo é expressar valores culturais e reforçar a identidade social. Símbolos culturais, ideias arraigadas sobre o certo e o errado, o moral e o imoral são base suficiente para a ação política. Esta forma de política é chamada de “moral” não necessariamente por seu alto valor ético, mas sim por ser moralista. Pessoas direitas e homens de fé, de um lado, tanto quanto as “vítimas da opressão” e “os corpos historicamente subalternizados”, do lado oposto, lutam na esfera pública para corrigir o comportamento dos imorais. Que tanto podem ser os liberais nos valores, os opressores ou “o resto da sociedade”.

Eles buscam resultados tangíveis, como leis e políticas públicas, que reflitam sua visão de mundo e seus valores, ou que assegurem privilégios para membros especiais do grupo. No entanto, acima de tudo, buscam resultados simbólicos: a conversão dos outros e da sociedade de acordo com a definição de correção adotada pelo grupo; a vigilância constante dos comportamentos inadequados na esfera pública, levando a expedições morais punitivas; a disputa contínua pela linguagem apropriada; a recusa fundamentalista em questionar as crenças compartilhadas pelo grupo; e o horror a quem deles diverge.

O aparente caos do debate público em grande parte decorre disso. Há, sim, discussão política como habitualmente se faz, mas isso é quase nada diante da quantidade de temas, propósitos e atores que colidem entre si numa intensidade sem precedentes. A política institucional segue o seu caminho, em geral pouco virtuoso, enquanto a esfera onde ela deveria ser examinada, dobrada à razão e ao interesse público, e negociada republicanamente, virou uma confusão de performances, símbolos e dogmas cujo sentido é impossível estabelecer.

Wilson Gomes, Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de “Crônica de uma Tragédia Anunciada”

Fonte: https://www.folha.uol.com.br/